No seminário da Identificação Lacan nos força, nos obriga a acompanhar uma abordagem topológica que, para alguns que não contam, de saída, com esse caminho, mediação entre teoria e prática, fica particularmente difícil, para não dizer inacessível.
Entretanto, trata-se de um campo/instrumento que bem num só-depois vai se configurando como necessária fronteira entre a prática psicanalítica e sua articulação teórica.
A partir daí, na experiência de cartel que vivo no momento com mais cinco pessoas, trabalhando o próprio seminário da Identificação, uma interrogação foi tomando corpo, será que podemos considerar o cartel como uma superfície topológica? A pergunta parece se justificar basicamente pela importância do furo − só a vibração do furo pode definir um cartel e sabemos que o furo é o nervo topológico. Vejamos.
Trata-se de uma superfície fechada, na qual o buraco, nervo topológico, deve ser mantido. Tal manutenção é tarefa do +1 que, no seu exercício, deve também se configurar como -1, mero lugar, lugar esse que mantém vigilância sobre outro lugar, o do buraco. O que se verifica nesse caso é uma lógica primária, à medida que o conhecimento se amplia a área do desconhecimento também se amplia. Mas deve ser sublinhado o lugar do +1 como garantidor do vazio do buraco, a despeito dos relâmpagos do saber e que, até por serem reconhecidos como relâmpagos, o que destitui a mestria, mantém o exercício de compreensão e interrogação percorrendo a borda do furo.
O cartel constituído por cinco ou seis pessoas funciona como um processo de vizinhança, vizinhos não paralelos que conjugam lugares diferentes, advindos de traços distintos numa associação que sabemos não tão livre do cada um singular para um espaço mais amplo. Há de se considerar que o eixo desse funcionamento está referido ao Outro, presença que separa o cartel de um grupo e sustenta a possibilidade da palavra de um virar significante para um outro.
Cada um importa, por isso a cada um é exigido que dê o seu pedaço de carne, a cada um é exigido que fale do seu lugar de transferência, de transferência de trabalho.
Consideramos que esse lugar cartel é um lugar propício para o reconhecimento da transformação da demanda em desejo, o sujeito pode surpreender vindo à tona numa interrogação substantivada, densa, que se estende ao próprio ser. Poderíamos reconhecer aqui o que Lacan diz sobre a superfície do buraco, “essa superfície assim estruturada é particularmente propícia a fazer funcionar, diante de nós, esse elemento, o mais inapreensível, que se chama desejo, enquanto tal, em outras palavras, a falta”?
Também para nós fica como pergunta o que Lacan traz sobre o cross-cap que fala de uma estrutura entrecruzada. É o caso do cartel? E, ainda se referindo sobre esse ponto, Lacan se refere ao objeto do desejo e ao falo na medida “em que é por ele, enquanto operador que o objeto pode ser posto”… É possível admitir tudo isso num rebatimento sobre o cartel?
A dimensão temporal também intervém nesse processo, há de ser considerada a pressa do tempo lógico, o cartel tem uma duração definida.
Na prática, no rolar e ralar do dia a dia, nos defrontamos com as resistências de cada um, somos chamados a engomar nossa experiência narcísica e nos exercer na rivalização que uma situação grupal promove.
O cartel, assim o entendo, só pode se fazer valer sob o comando/reconhecimento do Outro que sustenta um menos, a partir do exercício do +1, e os cortes que operam re-cortes permitem a vivificação do vazio (do vazio…chegamos ao nada?).
Embora não se tenha uma receita para um funcionamento de cartel o só-depois nos permite reconhecer alguns elementos de sua estrutura naquilo que se articula e desarticula num encontro “marcado”, passageiro… O verbo ter mostra uma dimensão: tivemos cartel. Isso faz a verdade de que a proposta “vamos fazer um cartel” nem sempre se conclui com “tivemos cartel”.
É o convite para um espaço em que nossa ex-sistência pode ser compartilhada, mas para isso é preciso que naquele tempo, naquele lugar, cada um de nós possa se sujeitar a esse convite que só tem efeitos quando entendido como convocação, isto é, suportar esse “vocare” como do Outro.
Essa referência ao Outro, como debulhá-la?
De saída, dando à palavra o valor de significante, fazendo-a sem autor, sempre equívoca, sustentada apenas na sua essência de corte e, em sendo assim, admiti-la como determinante do sujeito. Teríamos então em jogo mais os sujeitos do que os eus, embora, claro, os eus não são eliminados e vão intervir aqui e ali ─ o cuidado é de sabê-los submetidos a um lugar Outro.
Quanto à transferência de trabalho, outro eixo essencial do funcionamento de cartel, como entendê-la? Me parece que deve ser avaliado o tipo de pertencimento que ali se define. Qualquer grupo convoca um pertencimento, uma inclusão. Embora reduzindo, podemos abordar esse pertencimento sob o ângulo do amor (onde vige também pedido de reconhecimento), do interesse (particularmente em relação ao poder) ou do trabalho ─ aqui vale trazer, de novo, Riobaldo, aquele da epígrafe da introdução: “a colheita é comum, mas o capinar é sozinho” [1]. Juntamos a solidão do humano sempre embarcada nos desvios do Outro com a partilha necessária com o outro. Com-partilhamos o significante, compartilhamos corte, como diz a música “pedaços de mim”… Essa partilha de significantes procura sem cessar aquilo que o real, sempre o mesmo, não diz.
O processo de capinagem convoca uma vizinhança que não se define pelo amor, mas por uma tarefa (trabalho), com duração limitada. Reproduz no coletivo o movimento temporal no qual o inconsciente nos conduz ─ abre e fecha…para abrir de novo…
O cartel é uma passagem que rebate sobre o nosso destino de passageiros.
* Este texto está incluso na publicação do Cartéis Lacanianos: O cartel é uma superfície topológica? (2021)
[1] Epígrafe que consta na introdução da publicação O cartel é uma superfície topológica? : “De Riobaldo, no Grande Sertão, ‘a colheita é comum, mas o capinar é sozinho’.” A frase foi retirada do livro de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.