Algumas coisas que escrevi durante o trabalho com o Seminário “A Identificação” ou Um fio puxado

Alayde Martins

Relendo o que havia escrito em minhas anotações durante a leitura do Seminário A Identificação, deparei-me com o fato de que eu já havia colocado nelas tanto as minhas questões quanto as tentativas de elaborá-las. Não consigo avançar além do que já pude ir até agora, e não tenho nenhuma vontade de repetir aqui o percurso que fiz para poder concentrar em alguns parágrafos elaborações de leitura de Freud e Lacan. De fato, só de pensar em fazer isso, veio-me à lembrança uma frase que encontrei em Planolândia, Um Romance de muitas Dimensões, de Edwin A. Abbot:

 “Que vergonha, como eu enquadro desvairadamente o meu discurso!”

Então vou puxar um fio bem fininho de todo esse tecido. Quem sabe, terei assim a chance de desfazê-lo. Não importa o que se esteja tecendo, este “se” vem aqui dizer exatamente isso: a cada vez que um tecido é feito, quer seja com pontos largos e linha grossa, ou com muitos buracos ou mesmo com uma estrutura quase sólida, não importa se é um texto que tece esse tecido, o que se tece é esse “se” tece. É ser aí, no sujeito indeterminado, no que vai de mim e do além de mim no texto tecido, no tecido tecido. (Olha! o significante que se repete não sendo ele mesmo, A diferente de A!)[1]

 

Um analista faz tricô

 

Dizem que Melanie Klein tecia seu tricô durante as sessões de análise. Quando comecei a clinicar minha linha era kleiniana. Começar a ser tecida por uma linha lacaniana era algo muito diferente, algo estonteante para mim. Eu tive um sonho quando comecei a receber em minha análise os significantes que retornavam de minha fala. Sonhei que minha analista fazia tricô e me dava alguns pontos que ela tirava da malha tecida. Um tricô deveras especial. Possível apenas no sonho e na análise.

Pontos que eram os buracos circunscritos, retirados do tecido tricotado, retornando de um Outro – lugar – para minha escuta.

Escrever é expor-se, expor seus buracos na trama textual da tecitura.

Que traço é esse que pode permitir ao analisante reconhecer-se no discurso que lhe vem do Outro? O que sustenta que isso que eu disse sem saber que estava dizendo, isso que não diz o que eu pensava que queria dizer, isso que diz o que eu pensava que não iria dizer, que tudo isso possa ser identificado, mesmo assim, como meu, reconhecer como verdade, aquilo que não faz sentido? Isso não é simples e não é algo que esteja sempre dado.

Eu já estive, quanto a isso, diante de pacientes que, ao escutarem o que eu lhes repetia de sua fala, tiveram reações bem singulares.

Um, não conseguia sair da sessão e me implorava para deixá-lo corrigir o que ele tinha dito, pois não teria sido o que ele queria dizer; outra, ficou profundamente ofendida, porque eu teria escutado algo que não era verdade, pois ela não tivera a intenção de dizer, e que, além do mais, fazia com que ela aí fosse uma pessoa má, o que não era verdade. Outra paciente ao escutar os significantes que se desprendiam de seu discurso e que eu lhe retornara, ficou muito assustada com aquele tipo de coisa; ela disse que parecia que eu fazia uma espécie de macumba em que eu lhe obrigava a dizer as palavras do diabo. Uma outra, ria muito, pois dizia achar engraçados os chistes que eu fazia com o que ela dizia. Uma outra arregalou os olhos assustada com o que ela estava escutando, sem sequer reconhecer que eram palavras que ela havia falado.

Percebi pelo menos uma coisa. Que, então, a maneira como o sujeito recebe o que vem do Outro no seu discurso ajuda na determinação de uma suposição diagnóstica. Mas, o que faz com que isso seja assim?

Em uma neurose obsessiva o sujeito pode até reconhecer que foi dele que partiu o que foi dito, mas não consegue atribuir verdade ao dito. Ou foi um erro dele ou foi um erro meu. Mas fora das neuroses, o que foi dito é atribuído ao outro, um semelhante que, dependendo da transferência, pode ter boas ou más intenções.

Então, tem algo que permite ao sujeito ser no discurso do Outro, ex-sistir no Outro.

Uma enorme diferença entre o significante e a palavra se abre aqui.

 Parlêtre, a gente traduz por fala-ser, ser-falante, mas assim, perdemos a letra; também podemos traduzir por fale-ser, com todas as assonâncias que nossa língua nos permite. Ainda que não recuperemos a lettre, introduzimos o imperativo da fala ao ser e indicamos seu apagamento aí.

 Neste momento, quando leio para vocês o que escrevi, devo suportar saber e ignorar que, o que eu lhes digo, terá sido do Outro que adveio e que o sentido será dado pelo outro, por vocês, que me escutam. Eu não sou dona das minhas palavras, dessas mesmas que, entretanto, sustento diante de vocês. Eu não sei o que digo, porque o sentido do que digo é aquele que cada um dará ao que escutar de minha fala.

Ainda assim, como estamos sob um mesmo código, é possível que minhas palavras façam um pouco de sentido para vocês.

Um significante que advém num ato falho, numa análise, não faz sentido, a não ser no a posteriori. Ele abre o sentido, abre um buraco, ele faz enigma, um semisentido, e ele puxa um fio que pode trazer, por associação, toda uma nova cadeia de significantes. Às vezes perdemos o chão, o equilíbrio, com o advento de um significante. Perdemos o eixo. Que eixo?

 

O advento do sujeito do inconsciente a partir do negativo, do não, do vazio que o significante circunscreve

 

Lacan já o havia trazido com o pote de mostarda, mas aqui ele o amplia, através desse apólogo em três tempos de Sexta-feira na ilha de Robinson. Primeiramente a marca de passo, o traço da passagem, que é também escutado como marca, traço do não, trace de pas. Ao apagar o traço do passo, o signo da passagem, o sujeito vem a se constituir aí, Pas de trace, certeza de um sujeito. Mas é ao circunscrever o lugar onde o traço do passo estivera que o significante advém.

 Pas de trace, o traço do passo apagado que o significante cerne, que é sempre esse Um saído do todo, saído do nada. A fundação do um que constitui esse traço.

A marca do sujeito do inconsciente é identificável no ne, o significante de sua divisão. Mas é o pas, o não, o passo pagado que mostra o furo no real constituindo o sujeito como um efeito do significante. O lugar onde não há nenhum traço, o menos um. “traço unário, entrada no real do significante inscrito” (p. 168).

 “o traço unário apaga tudo da coisa. Onde a coisa era, estava, por meio do Um, eu serei, estarei” (p. 224).

Enquanto apagamento do traço na emergência de um sujeito, não se trata do um do único, mas do Um do unário. É seu batimento na repetição que o diferencia no mesmo ato em que o repete. “Cercar o rastro apagado para voltar ao lugar de passagem”. Pas de trace que restará como marca do traço em todo significante, de ser aquilo que o outro não é.

 “nada da função significante é propriamente pensável, sem partir disso que formulo: o Um como tal é o Outro” (p. 47).

O sujeito do inconsciente não será, então, esse sujeito que, ao apagar o traço unário, se constituiu e que advirá na repetição do significante? No entre dois significantes? Ao marcar o lugar onde estivera o traço, com os significantes, se apaga ele mesmo no significante, fazendo assim, dos significantes, a possibilidade de retorno ao lugar de seu apagamento; o sujeito terá assim seu lugar nesse vazio cernido pelo significante. Vazio fundamental para que o significante inscrito em sua pura diferença represente o sujeito. Esse sujeito aí, que ex-istindo, não encontrará nada no campo dos significantes, no Outro, que diga o que ele é, que o nomeie. O significante do que ele teria sido, falta ao Outro.

Entretanto, para que o sujeito aceda à linguagem e, assim, ao seu lugar como sujeito, seu destino, há uma direção a seguir, que passa inclusive pela terceira identificação como aquela que Freud diz que se faz ao desejo do Outro. É mais uma longa teorização através dos significantes cernidos por Lacan nesse seminário tão topológico. Ela tece a relação entre desejo e demanda, a questão posta ao sujeito, a fantasia como o que vem situar o desejo, pelo significante falo, vindo marcar uma falta no Outro, pelo Nome-do Pai metaforizando o desejo da mãe etc.

“Claro, o sujeito, ele próprio, no seu último termo é destinado à Coisa, mas sua lei, mais exatamente seu destino, é esse caminho que ele só pode descrever através da passagem pelo Outro, enquanto o Outro é marcado pelo significante. E é no aquém dessa passagem necessária para o significante que se constituem como tais o desejo e seu objeto” (p. 224).

Efeito metafórico, mais claramente, como significante que responderia ao que o Outro quer. É o Nome-do-Pai que virá substituir essa incógnita, sustentando a significação fálica. Então, desejo tomado na demanda do Outro e significado ao sujeito. Nesse vazio, nesse x, nesse buraco interrogativo sobre o que o Outro quer, vem inscrever-se o falo. Significante da falta no Outro.

Ao sujeito dividido, entre enunciado e enunciação, restará, por um lado, estar identificado com o objeto, com o resto dessa operação significante, ou seja, com o a do matema da fantasia, por outro lado, identificar-se com o significante da demanda do Outro, com a falta no Outro, e apagando-se como sujeito, advir na evanescência à passagem desse significante que o representa para outro significante[2] .

Vou puxar o fio só mais um pouco.

 

Fixar seu desejo em uma fantasia fundamental

 

Estar identificado com o resto dessa operação do significante, ou seja, identificar-se com o objeto da demanda do Outro, apagando-se como sujeito. O sujeito do desejo se prende na fantasia e se faz repetir no sintoma. Quando a fantasia é abalada, a gente vacila em nossa certeza de ser. Não estamos propriamente amarrados aí. É uma fixação possível para o sujeito do desejo.

Para nos fazer ver a relação entre desejo e demanda, Lacan introduz o toro. Eu pensei no toro como um bambolê. Estamos, somos no buraco central fazendo o bambolê girar. Quando o movimento se interrompe, somos nós que caímos. Eixo estranho…

Sujeito barrado, dividido pelo significante punção de a. Punção, corte, encontro impossível, grafado por Lacan na punção, isto é, do vel “e” (˄) reunião, com o vel “ou” (˅), exclusão. Lacan lê o matema da fantasia assim: sujeito barrado corte de a. O sujeito está na efemeridade de sua passagem quando um significante emerge do inconsciente, (aquele que não diz o que ele é, mas o representa para outro significante). Cada encontro faltoso, ou, dizendo de outra forma, cada vez que o real da falta lhe esbarra, lhe dá um encontrão, a fantasia balança.

Escutar o que se desprende da cadeia significante, o que vem do Outro, e admiti-lo. Não se trata propriamente de admissão, mas de submetimento.

A análise permite alguns abalos, alguns encontrões. Não se trata exatamente de uma passagem, nem mesmo de um percurso. É uma ida sem volta, para onde não se sabe. O ato da enunciação abala o eixo que nos sustenta. A gente sai ziguezagueando da sessão de análise. E, cá entre nós, podemos dizer, é meio bambo que acaba sendo nosso estilo de caminhar. Seria isso o atravessamento da fantasia?

Aqueles que estão comigo há muitos anos que me desculpem escutar essa frase mais uma vez. É um chicletinho que ainda tem gosto para mim. Lacan disse que é preciso ser fissurado pela psicanálise. Eu gosto da tradução. Poderia ser traduzido por mordido. Mas a fissura me permite escutar aqui tanto a carne cortada quanto o desejo de estar de novo e de novo aí. É estar só, com o desejo. Nem angústia, para defender-se contra o desejo. É estar à mercê do Outro, à deriva, talvez. Quando a gente está à deriva não sabe para onde está indo; entretanto, estamos em nosso barco, ao sabor das correntes. Acredito que essas correntes estão no fluxo associativo do discurso, as cadeias significantes que se movem no inconsciente enquanto a gente pensa que pensa no que fala. Assim, estamos sustentados e sustentando alguma coisa. Subsumimos no desejo. Sim, o desejo é para os desprevenidos. Só a transferência nos mantém aí dentro. Sem lado de fora. Na transferência, como disse o Antônio Carlos, só tem dentro. Só a psicanálise nos permite essa fissura, nos permite acreditar no inconsciente e nos surpreendermos com ele a cada vez, como Freud nos disse que lhe acontecia. Andar no fio… da navalha, com o real na sola dos pés.


 

* Texto escrito para a Intersecção, encontro de trabalho entre a AEPM  e o Cartéis Lacanianos em torno das elaborações do Seminário IX de Lacan: A Identificação, realizado em Maio de 2021.

[1]  “o que distingue o significante é ser o que os outros não são; o que, no significante, implica essa função de unidade é justamente ser somente diferença. É enquanto pura diferença que a unidade, em sua função significante, se estrutura, se constitui. Isto não é um traço único, de alguma forma ele constitui uma abstração unilateral que diz respeito à relação, por exemplo, sincrônica do significante. […] Nada da função significante é propriamente pensável, sem partir disso que formulo: O Um como tal é o Outro. É a partir disso, dessa estrutura fundamental do um como diferença, que podemos ver aparecer essa origem, da qual se pode ver o significante se constituir, se posso dizer, é no Outro que o A, do A é A, o A maiúsculo, como se diz, (o grande A) a grande palavra, está dito (p. 47).

[2] “É porque há um sujeito que se marca a si mesmo ou não com o traço unário, que é um ou menos um, que pode haver um menos a, que o sujeito pode identificar-se com a bolinha do neto de Freud e especialmente na conotação de sua falta, não há […] Obviamente, há um vazio e é daí que vai partir o sujeito” (p. 170).