Entre a vida vazia e o objeto indescritível, a poesia

Sílvia Furtado

Para abordar “a ética da psicanálise”, Lacan nos traz o seminário de 1959-1960, advertindo-nos que o que subjaz a esse tema tem o propósito de nos mostrar o que a experiência da psicanálise desde Freud inaugura como novo e que se refere ao “universo da falta” [1].

Lacan faz um longo percurso pela arte sob vários aspectos – embora sempre destacando o que nela há de um contorno do vazio – do qual recorto a poesia medieval denominada de amor cortês.

Lacan não está interessado na arte em si, mas em que a experiência artística, em particular a da poesia, nos mostrará dessas “taciturnas núpcias da vida vazia com o objeto indescritível” [2], como ele dirá mais tarde.

Mas, incluímos aqui que o tempo da psicanálise não lida com uma falta a priori, mas sim com o que vem a se constituir como uma falta onde nada falta. Seres da linguagem que somos, criacionistas, caminhamos em um tempo do só-depois, um tempo em que o que teria sido só se constitui no aqui e agora, no presente, não se trata de uma herança atávica. É assim com o pai da horda, com o objeto a e com o que se dá em uma análise.

A lei moral é desde Freud a interdição do incesto, uma lei que não está escrita, não está colocada em nenhuma palavra, mas que é a partir dela, da interdição de um bem proibido, o objeto do incesto – e não há outro bem, não há o Bem Supremo – que o sujeito acede à simbolização.

O Bem Supremo, Lacan nos diz que é das Ding, não é um significante, nem é um objeto, pois das Ding, a Coisa, não é die Sache, a coisa “governada pela linguagem”; por outro Lado, em das Ding há o “verdadeiro segredo”, pois o princípio de realidade está “sempre em fracasso e não chegando a valorizar-se senão de forma marginal e por uma espécie de pressão, […] die Not des Lebens, alguma coisa que quer, as necessidades vitais”[3]. Então, não é sem das Ding, “o verdadeiro segredo”, que chegamos a esse estado de urgência da vida, ou de desejo, que Lacan nos diz que intervém no nível do processo secundário. Das Ding é aquilo a que não se tem acesso, aquilo do que se é privado e, ao mesmo tempo, é o que me faz presente no mundo na minha singularidade.

Como dar conta da ética da psicanálise sem que nos embrenhemos por essa ação que vai ao kern do ser? Então, é do divã que nasce essa possiblidade, não de alcançar a verdade, mas de que ela seja articulada e marque o sujeito com esse encontro faltoso, já que a verdade, qual a prosopopeia, fala.

Uma questão que apareceu durante a leitura do Seminário A ética da psicanálise, conduzida por Alayde Martins, é a relação de das Ding com o que se coloca no centro do amor cortês.

Nesse seminário, o que Lacan aborda sobre o amor cortês aparta-se de qualquer que seja o viés literário ou histórico da poesia trovadoresca; ele nos diz que “o que a criação da poesia cortês tende a fazer deve ser situado no lugar da Coisa […]. A criação da poesia consiste em colocar, segundo o modo da sublimação própria à arte, um objeto que eu chamaria de enlouquecedor, um parceiro desumano” [4]. Assim, a Dama como esse ser “desumano”, é elevada a um lugar, ao mesmo tempo, cruel e sem humanidade. E é a partir desse “artifício da construção do amor cortês”[5] que Lacan vai nos mostrar que o lugar da Dama se aproxima do lugar de das Ding, a Coisa, disso que não é um significante, que é inapreensível, que só pode ser circundado, bordejado. Das Ding, a Coisa é o inconciliável, o inominável, o que nos aproxima do mortal.

Se tanto Rougemont[6] como Agamben[7] abordam a poesia do amor cortês na intenção de circunscrever, respectivamente, uma origem dessa forma de amor ou dessa forma poética, Lacan vai nos levar ao amor cortês como aquilo que “deixa contudo rastros num inconsciente […], num inconsciente tradicional, veiculado por uma literatura, por todo um conjunto de imagens, que é aquele no qual vivemos nossas relações com a mulher”[8]. Assim, sem procurar a origem nem o porquê, Lacan diz que, “de maneira deliberada, esse código moral institui, no centro de uma certa sociedade, um objeto que é, no entanto, deveras um objeto natural” e esse “objeto aqui é elevado à dignidade da Coisa, na medida em que esse novo objeto é promovido à função da Coisa [9]. E, elevar a Dama à dignidade da Coisa leva-nos a perguntar, “mas que Coisa é essa?” e, por outro lado, “que é elevar um objeto à dignidade de?”.

Lacan vai buscar em Freud o conceito de das Ding, mostrando-nos que, sem a sua leitura, esse conceito não teria vindo à luz como um ponto capital da originalidade freudiana, quando este diz que “o objeto primeiro e imediato da prova da realidade não é o de encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao apresentado, mas reencontrá-lo, convencer-se de que ele ainda está presente” [10]. A Coisa, essa inquietante estranheza, é aquilo ao qual não tenho acesso, aquilo do que sou privado, mas que se inscreve enquanto “o primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito”. A temporalidade da psicanálise inscreve um lugar que nunca esteve lá e somente a posteriori ele é, como tendo estado ali.

Então, a poesia trovadoresca circunscreve um objeto, a Dama, que é elevada, isto é, que é alçada à dignidade da Coisa, das Ding. Lacan diz que, quando fala da Coisa, fala de alguma coisa de maneira operacional “pelo lugar que ela ocupa numa certa etapa lógica do nosso pensamento e de nossa conceitualização, por sua função naquilo com que lidamos”[11].

O amor cortês institui uma Dama que tem sempre as mesmas características, é despersonalizada, “de tal forma que os autores puderam notar que todos parecem se dirigir à mesma pessoa”[12], o objeto feminino é esvaziado de toda substância real. Então a quem ou melhor ao que se dirige o poeta? Certamente a um lugar. Das Ding está no âmago da tramoia humana, da trama, da tessitura do sujeito. A Coisa é o registro que faz o sujeito hesitar diante do momento de prestar falso testemunho, é o lugar do desejo?

O amor cortês, nessa perspectiva, não se resume ao nascimento de uma nova forma de amor, ou mesmo de uma nova possiblidade poética a partir do lugar assumido pelo poeta em relação à palavra cantada, mas o que Lacan vem nos mostrar é que a poesia trovadoresca foi capaz de mostrar que o amor é letra morta em canto vivo, em carne viva, que circunscreve o lugar vazio ocupado pela imagem do objeto inalcançável. E não seria nessa transgressão, nesse jogo de ir e vir do novelo, que o trovador articula em palavra o amor que queima a partir do desejo, desse lugar vazio? Não seria esse encontro faltoso – que dessubstancializa a mulher e, ao mesmo tempo, a instaura nesse lugar poético de objeto inapreensível, supervalorizado e desumano – o que Lacan chama de taciturnas núpcias entre a vida vazia e o objeto indescritível?


 

*Questões advindas da leitura do Seminário VII: A ética da psicanálise, conduzida por Alayde Martins em 2020.

[1] LACAN, Jacques. Seminário VII : A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1988, p. 10.

[2] LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein (1965). In : Outros Escritos. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2003, p. 205.

[3] LACAN, Jacques. Seminário VII : A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1988, p. 61-62.

[4] Ibidem, p. 187.

[5] Ibidem, p.187.

[6] ROUGEMONT, Denis. História do amor no Ocidente. São Paulo: Ediouro, 2003.

[7] AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

[8] LACAN, Jacques. Seminário VII : A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1988, p. 141.

[9] Ibidem, p. 141.

[10] Ibidem, p. 69.

[11] Ibidem, p. 171.

[12] Ibidem, p. 185.