Por que Lacan precisou passar pela sublimação e pelo belo-sublime para chegar à ética da psicanálise?

Maria Victoria Borges Díaz

Em janeiro de 2008, quando voltava a esta instituição para dar continuidade à minha formação psicanalítica, apresentei o resultado do trabalho com o Seminário X, A angústia, a partir da noção de causa, usada por Lacan em relação ao objeto a como causa de desejo. Dado que ele falava de uma crítica da razão pura que poderia ser exposta “por nossa ciência” feita a partir do reexame da noção de causa, fiz algumas considerações sobre a articulação que estava estabelecendo com Kant (“Kant e Lacan: intercursos críticos”). Referia-se inclusive a sua “ética transcendental”, o que chamou minha atenção, pois a palavra “transcendental” é utilizada por Kant com uma acepção relativa ao estabelecimento das condições de possibilidade e aos limites da Razão em sua pretensão de conhecer algo que está além da experiência. Se, por um lado, ultrapassar esse limite é ilegítimo e dá lugar a falsos problemas e ilusões internas, por outro, ao não poder impedir a pretensão da Razão, baseada num interesse legítimo de ultrapassar esse limite, Kant considera necessário passar do interesse especulativo para o prático (moral, ético).

A analogia que pretendi estabelecer entre Kant e Lacan é que este, ao buscar situar uma certa efetividade do negativo como o próprio da psicanálise, dá um encaminhamento transcendental, na medida em que trata das condições de possibilidade da experiência analítica. A dificuldade está em estabelecer como é possível a própria experiência psicanalítica frente a esse objeto negativo exterior à cadeia significante. É necessário pensar em uma certa efetividade do negativo que não se resolva em uma síntese que acaba por positivar o negativo, admitir que algo vem à presença negativamente ou que haja uma presença do negativo. Portanto, esse encaminhamento passa necessariamente por aquilo que Kant considerava um uso ilegítimo da razão, se não para conhecer coisas em si, pelo menos para compreender como coisas que não estão contidas no contorno de um aparecimento e cujo modo de ser é o não-ser podem ser teorizadas. Talvez seja esse o motivo do deslocamento para a ética. Na época, já que se tratava do Seminário X, o lugar de manifestação dessa negatividade encontrava-se na angústia. A crítica por ele conduzida levou a uma “necessidade estrutural”, que, em última instância, remete à estruturação do desejo na fantasia e à afânise do a, ou seja, ao desaparecimento do objeto numa dada fase do funcionamento fantasístico.

No Seminário VII[1], Lacan faz referência ao que passou a se chamar de “Terceira Crítica”, a Crítica da Faculdade do Juízo que trata do julgamento estético. Ele considera que a noção de sublimação teria muito a se beneficiar da teoria kantiana do sublime. Também no que se refere ao belo, ele cede a palavra ao Sr. Kaufmann “num campo, num ponto de articulação que considero como essencial para o prosseguimento de meu discurso, isto é, a definição do belo e do sublime, tal como foi colocado por Kant” (p. 337). Não tendo a comunicação proferida por ele, fui ao encalço de me informar a respeito do belo e do sublime no que me pareceu válido para o acompanhamento das questões que surgiram na leitura deste Seminário.

Para Kant, o julgamento do tipo é belo é a forma superior da faculdade de sentir prazer como efeito da representação de uma pura forma de objeto. Nesse sentido, a existência material do objeto representado permanece indiferente e só pode ser superior sendo desinteressada no seu princípio. O julgamento de algo como belo não tem a ver com nenhuma finalidade prática do objeto, ou alguma inclinação “patológica” associada a ele. É a reflexão de um objeto singular na imaginação sendo essencial o desenho, a configuração. A imaginação é responsável pela composição do múltiplo, esquematizando-o, ou seja, formalizando um esquema de inteligibilidade que será operado pelo entendimento, ao consagrar a unidade da representação. Interessante é que o sentimento superior de prazer é fruto de um jogo livre das faculdades e não supõe nenhuma intervenção do conceito do entendimento. Esse livre jogo entre a imaginação e o entendimento que forma um senso comum estético (o gosto) não pode ser conhecido, mas apenas sentido. Trata-se de uma pura harmonia subjetiva que pode induzir a um estado subjetivo inercial e mesmo a uma certa sensação prazerosa de plenitude.

O outro tipo de julgamento estético, do tipo é sublime, é em todo diferente da reflexão formal. O sentimento do sublime é experimentado diante do informe ou do disforme (imensidade ou potência). A imaginação vê-se confrontada com o seu limite e percebe sua impotência para abranger a totalidade da unidade visada pela razão. Esta conduz a imaginação a confessar que toda a sua potência nada é relativamente a uma Ideia. Com tal desacordo, a imaginação parece perder sua liberdade e o sentimento do sublime é uma dor, mais que um prazer. Mas, esse mesmo desprazer gera um prazer, na medida em que desse desencontro abre-se a perspectiva de elevação subjetiva. A imaginação constata sua finitude sensível, mas ao passar a representar-se, de forma negativa, a inacessibilidade da Ideia racional, a imaginação coloca-se acima dos obstáculos da sensibilidade, passa a ter uma destinação supra-sensível, tal como a razão, o que prepara o homem para o advento da lei moral.

Os comentadores ressaltam a mudança que se produziu na noção de belo como forma harmoniosa que perdeu seu valor de julgamento estético caindo na categoria do que Kant chama de “agradável” e que supõe o efeito qualitativo em nossos sentidos e, portanto, o interesse “patológico”. Há um deslocamento da noção de belo para a de sublime que acompanha a nossa sensibilidade estética. Acredito que é o caso de Lacan. Quando ele fala da função do belo não se encontra ali nenhuma ideia de beleza como forma harmônica, mas sim uma espécie de fusão entre o belo e o sublime.

Vou me restringir à imagem da beleza de Antígona.

Antígona é uma imagem e um ato.

Enquanto imagem, ela nos fascina, nos atrai, nos retém e ao mesmo tempo nos interdita. É a imagem da beleza sublime através da qual somos purgados, purificados de tudo que é da ordem do imaginário. Antígona é a imposição estética de uma imagem que é a destruição do Imaginário. Uma imagem que interrompe a série.

Essa imagem de um objeto (o objeto feminino) subtraído do imaginário (“objeto elevado à dignidade da Coisa”) corresponde à desalienação do desejo. Antígona é portadora de uma ética que a subtrai do mundo dos valores constituídos, das significações estabelecidas. Mas, Antígona não se encerra aí. Há algo a mais: essa beleza perfeita e congelada de Antígona. Essa imagem se subtrai ao nosso olhar, pois se trata de “um brilho insuportável”, o que vem metaforizar a ideia de algo do impossível que se, por um lado, torna visível, por outro tem um “efeito de cegamento”. Essa dupla função de fascínio e de desnorteamento é o que corresponde a essa junção do belo e do sublime de que falávamos anteriormente.

A posição subjetiva de Antígona coloca-a no “entre duas mortes” (a simbólica e a real). Após a decisão de desobedecer à ordem que impedia enterrar o corpo de Polinices, ela se sabe excomungada, por Creonte, da pólis. Ela, então, se identifica com esse irmão ao qual, morto na realidade, são negados os rituais simbólicos (morte simbólica). Simetricamente, ela se encontra excluída da comunidade simbólica e caminhando para a morte, só lhe restando a vida biológica.

Lacan considera que a queixa de Antígona, ao transpor a entrada da zona entre a vida e a morte, no momento de realização de sua Até, se pode ser entendida como “contra-senso insensato” por alguns comentadores, é porque não perceberam o limite de onde Antígona se põe a fazer a lamentação, a poder “viver a vida sob a forma do que está perdido”. O efeito de beleza desse momento, “desse desejo tornado visível que se depreende das pálpebras da admirável moça” é a efetivação do que se pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte como tal. “Esse desejo, ela o encarna.”

Nada de humanismo. Se Antígona aparece como aquela que realiza o ato de maneira autônoma, livre, pode-se atribuir a ela as características do pressuposto colocado por Kant como condição de possibilidade da razão prática, ou seja, da ação moral, da ética: uma vontade livre que só visa à pura forma da Lei? Aproximar a universalidade da lei moral com o desejo puro não aproxima Lacan a Sade? Como o mesmo sai dessa encruzilhada?


 

*Texto escrito a partir do trabalho com o Seminário VII, A ética da Psicanálise, de Jacques Lacan, realizado na AEPM em 2020.

[1] LACAN, Jacques. Seminário VII : A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2008.