Sobre a sublimação

Polliana Jurique

Lacan nos diz que um analista conduz um tratamento, não um sujeito. Não deve ser encontrado naquele lugar onde é demandado por seu paciente. Não lhe cabe dar opiniões, seu eu não deve estar ali no momento do tratamento. Questões da prática analítica de cada um, que nos interrogam nas supervisões se, no final das contas, os tratamentos que conduzimos estão pautados na Ética da psicanálise. Mas, antes de sabermos se os tratamentos que conduzimos tem como eixo a Ética da psicanálise, temos que saber que Ética é essa.

Lacan nos conduz por muitos caminhos para cercar isso de que ele se ocupa nesse seminário. Fundamentalmente seguindo com Freud, ele recorre também à obra de Aristóteles, Kant, Sade, Shakespeare, entre muitos outros.

Há uma dedicação específica ao que se nomeia sublimação. Dentro de tudo que se pode falar da sublimação, me ative a esse ponto que especifica essa pulsão ou energia pulsional que teria um destino sexual, mas que encontra um destino não sexual. Aquela dita sublimada. Mas é sublimada em quê?

Sublimação, sublime. Esse sublime começa a dar uma direção.

Lacan, nesse ponto, nos fala da arte, da anamorfose, das maçãs de Cézanne, do amor cortês. Ele tenta, por esse meio, com que comecemos a fazer uma distinção que será fundamental em nosso trabalho entre objeto e das Ding. Ele nos dá um exemplo que talvez nos aproxime disso quando ele fala do colecionador. Há o uso do objeto, enquanto função específica daquele objeto, enquanto utensílio e há essa outra coisa que um colecionador nos deixa entrever e que nos aproxima de das Ding. Quando, em cada lugar que visito, compro uma máscara, não é para usá-las. Vou pô-las, por exemplo, penduradas em uma parede.

Lacan vai nos aproximar disso que foi o amor cortês e de toda produção literária que se dedicou a ele. Temos, inicialmente, isso: a mulher elevada a esse lugar sublime. Como nos demos conta, durante o trabalho, isso não quer dizer que elas não fizessem sexo, mas a atenção se volta para esse trovador, para essa trova, para essa mulher inalcançável, inacessível que deve ser cantada nesses versos. Lacan primeiramente aponta para essa função da troca das mulheres socialmente e, em seguida, para o fato de que, neste caso, elas são elevadas à categoria de das Ding, sendo assim, no amor cortês, a própria sublimação desse sexual.

André Capelão escreve sobre o amor cortês. Ele nos mostra diversos exemplos. Como um homem da alta nobreza deve se dirigir a uma mulher da alta nobreza, pequena nobreza ou a uma plebeia. Como um homem plebeu deve se dirigir a uma mulher da alta nobreza, baixa nobreza ou plebeia. Uma mulher deveria se relacionar com um homem de sua classe ou acima dela sob pena de perder seu valor. Uma plebeia poderia se relacionar com homens de sua classe ou acima. O homem poderia escolher livremente entre todas as classes, mas deveria se dirigir a cada classe de maneira diferente. Tudo isso estava escrito nas regras da cavalaria.

A certo ponto do texto de André Capelão, ele nos mostra que essa não era uma conversa entre solteiros, mas um tipo de amor que era buscado fora do casamento. Ele decreta: não é possível amar o marido, não é possível amar a esposa. Um casal está unido pelas obrigações do casamento. Sabemos que ali valia o dote, o contrato, a legitimidade dos filhos, a herança. Isso era do campo dos casamentos legítimos. O autor vaticina que o amor não pode estar do lado dessas obrigações.

O amor cortês vinha, portanto, sustentar naquele momento um erotismo.

Estar fora dessas trocas naquele momento não era qualquer coisa. Como ele mesmo diz, uma mulher não poderia fechar as portas do amor. Isso corresponderia, segundo ele, a uma punição à semelhança do inferno de Dante. Uma mulher seria castigada por ceder em excesso ou não ceder de jeito algum ao amor. Ali, inclusive, esse amor surge personificado, o próprio Eros se encarregaria desse castigo.

Aproximando com o exemplo do colecionador, o matrimônio estaria para o utensílio, o objeto, assim como o amor cortês faz, com essa sublimação, com que a mulher se torne equivalente a das Ding.

Lembrando Dom Quixote que, fascinado e delirante com os romances de cavalaria, quis sair pelo mundo fazendo heroísmos de cavalaria, mas precisava de uma mulher a quem dedicá-los.

O trabalho com o seminário da Ética foi produzindo essas interrogações sobre a mulher em algumas culturas na nossa atualidade. Por exemplo, a mulher, em alguns países do mundo árabe, chama a atenção: a burca; a ausência delas em reuniões masculinas, em fotos; um casamento no mínimo peculiar onde homem e mulher não se encontram para se casar… e esse homem que pode ter quantas mulheres ele puder sustentar. É um ponto muito interessante essa quantidade de mulheres agregando um valor a esse homem.

Nas famílias indianas não importa se um filho está brigado com o pai. Se ele se casa, é para a casa do pai que ele deve voltar para morar com sua esposa. Claro que, em nossa atualidade, um indiano já é mais livre para ter sua própria casa com sua esposa e o próprio mundo árabe já não é uma unidade quanto a essas questões com a mulher. Mas são situações que nos aproximam de outras coisas. Coisas que interessam a psicanálise.


 

*Texto escrito a partir do trabalho com o Seminário VII, A ética da Psicanálise, de Jacques Lacan, realizado na AEPM em 2020.