O buraco do sentido e o ponto que nos basta 

Márcio Clayton Costa

A interrogação principal que põe este texto em movimento, e frente à qual eu procuro minimamente articular um encaminhamento, é o que a noção de ponto de basta, apresentada por Lacan no capítulo XXI do Seminário III, pode esclarecer sobre a clínica das psicoses. Sobre quais pontos ela pode nos instruir no que tange à direção do tratamento possível junto a essa estrutura.

O que Lacan vem chamar de entrada na psicose, ele situa entre dois planos ilustrados pelo delírio schreberiano. De um lado, isso que é da ordem do sentido e que parece recuar para cada vez mais longe conforme a “reconstrução no plano imaginário”. Um sentido que ao mesmo tempo em que é pleno, se oculta “aspirando o sujeito” ao umbigo do fenômeno delirante. O umbigo, tal como Freud o postula a propósito dos sonhos, assinala o fato de que seu sentido acaba em um buraco.

Há, por outro lado, o que seria a vertente do significante, marcada não por sua significação, mas por sua significância. O que a mim soa como esse outro plano em que o significante seria entrevisto, surpreendido nele mesmo, em sua densidade, tomado não pelo que ele significa, mas como sendo o próprio suporte do que pode vir a se significar. Para Schreber são as vozes dos pássaros, o “discurso das meninas”, no qual o significado é vazio e assume o primeiro plano as qualidades formais do significante. É nessa direção que vai o seu delírio.

Ao passo que o neurótico habita a linguagem, o psicótico é antes “habitado, possuído pela linguagem” (p.292). Não que o neurótico não seja também por ela habitado. Afinal, o automatismo mental, sob certas condições, também se faz ouvir nele. Lacan o assinala evocando as observações de Clérambault.

O que se passa na neurose, todavia, é que nessa linguagem que o habita, o sujeito faz sua inscrição. Submete-se, pela castração, a um lugar que lhe é dado na ordem significante, um lugar de divisão, de perda.  Habita, então, aquilo pelo qual é habitado. É uma ideia próxima daquela que irá reaparecer no pensamento lacaniano sobre um centro que seria ao mesmo tempo exterior. Uma ideia pouco usual nas representações espaciais que nos vêm mais imediatamente. Não é por acaso que daí ele vai para a noção de ponto de basta, segundo suas palavras, um artifício espacializante.

É algo na relação do doente com a linguagem pela qual é habitado que parece sofrer uma transformação no trabalho do delírio. Uma vez que aí não há essa operação pela qual ele pode tomar seu lugar na linguagem – que ainda sim o habita, fala nele – só podemos vislumbrar algo do Outro a partir de um certo modo que aqui é chamado de alusão:

“Os fenômenos falados alucinatórios que têm para o sujeito um sentido no registro da interpelação, da ironia, do desafio, da alusão, fazem sempre alusão ao Outro com um A maiúsculo, como a um termo que está sempre presente, mas jamais visto e jamais nomeado, a não ser de maneira indireta” (p.299).

Essa relação de alusão é que está em cena nesse plano do significante na psicose: é de modo indireto, de viés, pelo delírio e no delírio que ele pode passar aí. A relação com o significante, na qual “ele se demora apenas numa casca, num invólucro, numa sombra” (p.297) é toda a possibilidade para ele de apreensão do Outro.

 Lacan diz que se ver assim, um pouco de “través” em relação ao significante, é, ao mesmo tempo, a desvantagem e o privilégio da psicose. Quem sabe é por não estar tomado no jogo do significante – o que, claro, lhe custa o sofrimento atroz que testemunhamos em suas memórias – que Schreber possui essa perspicácia que espanta Freud na semelhança de seu delírio com o que ele tão laboriosamente chegou em sua teorização sobre o funcionamento do aparelho psíquico?

Pois bem, é pela tensão entre duas vertentes, a do significado e a do significante, que Lacan aborda o que seria o ponto de basta, aquilo que viria fazer um ponto de parada no deslizamento incessante de um sob o outro.

No seminário, Lacan passa por Atália, obra de Jean Racine na qual destaca de um diálogo entre dois personagens o significante Temor a Deus.  Significante que teria o mérito de vir substituir todos os “terrores múltiplos” por um único temor que não é temor nenhum. Antes, é seu contrário. Quando se fala de ser temente a Deus não é de temor que se trata.  Nessa nuance, assim parece, Lacan apoia a ideia de que todo o enredo da obra, anterior e posterior, se organizaria em relação a esse ponto. Um significante que teria por efeito sustentar a ação do personagem, dando-lhe a coragem necessária para fazer o que lhe cabia.

No fim das contas, é à noção do pai que Lacan se refere a essa altura, afirmando-a como muito próxima da de Temor a Deus, ao menos no que ele divisa essa noção do pai como o nó que Freud reencontra por toda parte, o ponto de basta entre significante e significado. O Temor a Deus serve para levá-lo a questionar essa função onde Freud reconhece o nó do Édipo. É o termo imprescindível para instalação de uma mínima estabilidade no plano da significação: uma metáfora.

O psicótico não faz metáfora. Ainda que o faça, falta esta, fundante, a metáfora capaz de produzir uma ordenação na massa amorfa da significação pela intervenção do significante pai. Mais à frente, Lacan diz: “não é de um triângulo pai-mãe-criança de que se trata, é um triângulo (pai) – falo- mãe – criança. Onde estará o pai ali dentro? Ele está no anel que faz manter-se tudo junto” (p.368).

O falo é a mediação de nossa relação com a falta, metamorfoseando-a em perda.  O que se ganha aí? Talvez a delimitação disso que nos acossa, polarizando as significações e dando um lugar um pouco menos vulnerável ao abismo das questões sem resposta, ao buraco para onde o sentido aspira o sujeito. A entrada na ordem significante que faz do sujeito o material impalpável desse corte entre o que o vem representar e o para quem ele vem ser representado –  o que não pode ser senão outro significante – ao mesmo tempo o coloca ao abrigo diante desse Outro absoluto para quem ele não pode ter outra posição, senão a de objeto a ser aspirado.

 O que pode vir então barrar o psicótico nessa direção quando pelo significante ele não se encontra barrado? Na falta de um significante que possa marcar a falta de um significante no Outro, quando o ponto de basta não se faz ou se afrouxa, o que está em responsabilidade do analista que toma um caso de psicose em tratamento?

Penso que foi a ideia de que, diante de um caso de psicose, caberia ao analista “murar”, criar alguma “contenção” que prendeu minha atenção em como Lacan formula o ponto de basta nessa altura de seu seminário.  O que poderia vir em lugar disso que não tem lugar? Talvez não tenha sido à toa que a palavra contenção tenha me ocorrido. O que contém e no que é contido cada um?

Trataríamos, então, menos de cortar do que de “bastar” com o significante? Que espécie de intervenção é essa que se realiza com um certo modo de operar com a fala, já que, de toda forma, é de uma perturbação na ordem da linguagem que se trata?

Se não está no propósito, nem no poder da análise introduzir quem quer que seja à ordenação fálica de seu funcionamento, o que eu tendo a pensar sobre o que se passa no tratamento é que, uma vez que é como submetido ao que escuta do Outro, marcado pela Lei do desejo que o analista intervém, isso deixa marcas, mínimos pontos de referência no discurso daquele que se põe a falar. Isto é, na falta de pontos de basta, pelo tratamento, a presença do analista pode forjar balizas mínimas para um discurso marcado pela proliferação desenfreada no nível da significação.  Favorecer pelo diálogo peculiar em que consiste a análise o trabalho do delírio seria a forma possível de dar um lugar ao que subjetivamente encontra-se desabrigado quando da entrada na psicose?


 

*Texto escrito para a Jornada da Oficina da Clínica das Psicoses, realizada em setembro de 2021.