Escrevi um primeiro texto a partir da leitura e trabalho com o Seminário IV, coordenado por Márcia Teresa. Este se referiu à parte inicial do Seminário. Agora, espero poder trazer algo da parte que se refere à estrutura dos mitos na observação da fobia do pequeno Hans.
Quando do retorno de Márcia do Seminário de Verão da ALI (Association Lacanienne Internationale), que trabalhou o Seminário IV, creio que em agosto de 2019, ficou decidido que o trabalho seguiria até o final do Livro IV. Então, este fim chegou e embora não tenha participado do último encontro, considerei importante escrever.
Márcia trouxe uma questão relativa ao uso que Lacan fez da fórmula, melhor dizendo da “relação canônica” — de Félix Cânon— apresentada por Lévi-Strauss no texto “A Estrutura dos mitos” (p.246).
Sobre esta fórmula, Lévi-Strauss nos diz:
Quaisquer que sejam os ajustes e modificações a serem feitos na fórmula abaixo, parece desde já estabelecido que todo mito (considerado como o conjunto de suas variantes) é passível de redução a uma relação canônica do tipo:
Fx(a) : Fy(b) ≃ Fx(b) : Fa-1 (y)
Na qual, dados simultaneamente dois termos, a e b, e duas funções, x e y, de tais termos, postula-se que existe uma relação de equivalência entre duas situações, definidas por uma inversão entre termos e relações, com duas condições: 1. que um dos termos seja substituído por seu contrário (na expressão acima a e a -1) e 2. que uma inversão correlativa se produza entre o valor de função e o valor de termo de dois elementos (acima y e a).
Acho importante observar que a noção de termo (a e b) vai designar geralmente um personagem, um animal, um objeto material ou cósmico, e a noção de função (Fx e Fy) recobre, habitualmente, seja um atributo (uma característica) do termo a e b, seja uma ação que este termo pode realizar. No Seminário, Lacan vai se servir de termos, elementos e funções destacados por Freud no caso do pequeno Hans.
Eu continuei minhas pesquisas e indico como leitura complementar, do mesmo autor, o livro “A Oleira Ciumenta”, em especial os capítulos: “Demiurgos Californianos” e “Mitos em Garrafa de Klein”. Também recomendo a nota 71 do Seminário IV, da ALI, que gentilmente Periandro traduziu.
O que importa para mim é perceber, estudar como Lacan se serve desta ferramenta para debruçar-se sobre o caso do pequeno Hans. Retomo a ideia de aplicar a análise da estrutura dos mitos na observação da fobia do pequeno Hans.
Uma primeira pergunta é sobre essa aplicabilidade. Será que é sempre possível observar o caso clínico de uma criança considerando a estrutura dos mitos? Não creio, acho pouco provável. Mas, vou tentar articular essa ideia. Importante lembrar que Lacan tinha em mãos o texto de Freud, que por sua vez é a leitura de Freud do que o pai de Hans recolheu em suas observações quanto ao filho. Filigranas. Freud soube ler. Creio que era um material bastante rico, mas não bastava isso.
Proponho uma primeira aproximação da pergunta que formulei. A expressão de Lacan, ao considerar as narrativas de Hans como sua mitologia, abre ao menos duas hipóteses. De um lado, nos perguntamos: mitologia? Mas não se trata de um mito individual? Para adiantar, podemos formular: na impossibilidade de estar referido ao mito de Édipo, ou de se situar no mito individual do neurótico, Hans constrói sua mitologia, em suplência. Então, seria na tentativa de se situar simbolicamente quanto a esse mito que Hans produziu uma mitologia.
Lacan, sobre a análise do mito na página 366, diz:
A sucessão de fantasias do pequeno Hans deve ser, realmente, concebida como um mito em desenvolvimento, um discurso. Não se trata de outra coisa, na observação, senão de uma série de reinvenções desse mito com auxílio de elementos imaginários. Trata-se de compreender a função desse progresso rotativo, dessas sucessivas transformações do mito, e daquilo que, num nível profundo, representa para Hans a solução do problema, o de sua própria posição na existência, na medida em que ela deve se situar com relação a uma certa verdade, a um certo número de referências de verdade, nas quais ele deve tomar seu lugar (p.366).
Quanto a esse ponto, posso dizer que há uma intensa produção imaginária, de fantasias, na tentativa de fazer essa suplência ao Nome-do-Pai.
Ao mesmo tempo, me pergunto sobre a produção da fobia. Eu não estou separando essas coisas, mas fazendo a segunda interrogação. É claro que o caso Hans foi como foi, mas é legítimo perguntar pela fantasia e pelo sintoma. A fobia permitiu construir toda mitologia em torno do cavalo. Mas, eu diria que o endereçamento dessa mitologia permitiu uma simbolização. Não tanto que o pequeno Hans ficasse deslizando metonimicamente, mas que fosse possível alguma metáfora em suplência ao Nome-do-Pai.
[…] no desenvolvimento mítico de um sistema significante sintomático, devemos sempre considerar ao mesmo tempo sua coerência sistemática a cada momento, e o tipo de desenvolvimento próprio que é o seu na diacronia. O desenvolvimento no neurótico de um sistema mítico qualquer — o que chamei outrora do mito individual do neurótico — se apresenta como a saída, o desencaixe progressivo de uma série de mediações ligadas por um encadeamento significante cujo caráter é fundamentalmente circular. O ponto de chegada tem uma relação profunda com o ponto de partida, sem ser todavia o mesmo. O impasse, qualquer que seja, que é sempre contido na partida, se reencontra no ponto de chegada sob uma forma invertida, para ser considerado como a solução, com a diferença de uma mudança de sinal. O impasse de que se partiu se reencontra sempre sob algum modo, ao fim do deslocamento operatório do sistema significante (p.306-307).
Assim, Lacan vai ensinando-nos como podemos utilizar essa ferramenta da análise estrutural dos mitos.
Seguindo até o fim do Seminário, vemos Lacan fazer referência ao cavalo, à mordida e à queda do cavalo, como momentos em que Hans explicita o início da “bobagem”. São significantes relativos à castração. Diria, relativos à castração do Outro, grande Outro. Sendo esta a própria operação simbólica da castração, cujo objeto é o falo. Imaginário, mas que necessita do pai real como agente. O resumo, a simplificação não ajuda muito. Mas, também não é o caso de repetir aqui a formulação de Lacan sobre a metáfora em sua integralidade.
Na Lição XXII, vamos encontrar toda essa formalização — uma equação — que situa os termos da simbolização possível a Hans do complexo de castração.
O cavalo é o elemento pivô! Ele morde e ameaça o pênis, e também cai. Gostaria de finalizar este texto, retomando a função do mito segundo Lacan. Para ele um mito é sempre uma tentativa de articular a solução de um problema (p.300). Apresenta-se como uma narrativa e, no seu conjunto, possui um caráter de ficção. A ficção sugere “invariavelmente a noção de uma estrutura”, mas “igualmente mantém uma relação muito singular com alguma coisa que está sempre implicada por trás dela, e da qual ela porta realmente, a mensagem formalmente indicada, a saber, a verdade”. Não se pode esquecer a formulação de Lacan segundo a qual a verdade tem uma estrutura de ficção (p. 259).
*Texto escrito para a Jornada do dispositivo Trabalho de leitura do Seminário IV, realizada em outubro de 2021.