O ponto como o lugar do sujeito

Déborah Fernanda Mendes Pinheiro

Participar do dispositivo Acolhimento, Entrada e Fundação Permanente tem me suscitado questões para além dos textos que temos trabalhado. A cada leitura, discussão, a cada vez que me ponho a falar, tenho a impressão que há mais do que o texto traz, me sinto exposta, mas talvez seja esse mesmo o funcionamento da coisa. Confesso que neste, mais do que em qualquer outro dispositivo, me vejo desnudada e, mesmo com receio do que vai sair de minha boca, falo.

O texto que acabamos de trabalhar é do Antonio Carlos Rocha, Dos conceitos freudianos ao objeto da psicanálise[1], uma escrita densa, repleta de pontos teóricos ainda por mim inalcançáveis, mas que, de certa forma, não sei como, me indagou sobre a teoria, a clínica, questões pessoais e o caminho que tenho percorrido na AEPM. Dentre tantos pontos, algo chamou não somente a minha atenção, posto que o próprio Antonio Carlos se pôs a perseguir um rastro deixado por Lacan no Seminário XI (não tenho certeza se é este), estou me referindo à utilização da figura do ponto. Num primeiro momento, achei que se tratasse de algo simples, mas estava enganada, apesar de ser uma figura simples, não há simplicidade em abordá-la. Sigo com Antonio Carlos em busca de uma aproximação sobre o que é o ponto, porque Lacan se utiliza desta figura diversas vezes e de inúmeras formas.

No percurso do trabalho, nos deparamos com incontáveis pontos: ponto de ruptura; ponto de ligação; ponto de partida; ponto de partição; ponto de entrada; ponto de queda; passagem e repassagem pelo mesmo ponto; ponto do dever advir do sujeito. E ainda tem mais!

Mas afinal de contas, o que é um ponto?

Desde aqui já começa a problemática, pois depende do ponto de vista pelo qual ele é olhado.

Na geometria, é o cruzamento de duas retas. Na topologia, é uma superfície de dimensão 0. Na gramática, ele insere o intervalo, a escansão temporal das frases, a descontinuidade, a ruptura. Antonio Carlos nos diz que seu estatuto não pode ser definido pela geometria ou pela natureza, “seu estatuto é topológico”. E, de acordo com a topologia, o ponto é um lugar onde “coincidem o espaço, a superfície e a coisa eventualmente aí contida”. Neste ponto, “qualquer tentativa de resgate pelo imaginário é impossível”.

Mais à frente, ele irá fazer uma aproximação entre o ponto e o furo, e, de imediato, o que me vem à cabeça é das Ding. Lembro-me do Seminário VII, onde um furo no Real é circulado pelos significantes, nesse movimento em volta do vazio eles criam a borda. A figura do ponto se assemelha a um furo, de fato, um pequeno furo no tecido jamais pode ser reconstituído na forma como era antes que ele se formasse. Prosseguindo com Antonio Carlos, ele situa o ponto como “o lugar por excelência do sujeito”. Momento difícil para mim, pois aqui parece que há sim um habitante nesse lugar. Como é árduo percorrer estas noções que, na maioria das vezes, me escapam, sinto que falta muito a conhecer. Não consigo fazer uma separação dos conceitos, talvez porque isso não seja possível, mas, a cada vez, tenho a impressão que eles mesmos se deslocam e acionam outros, como dar conta disso? Porque apesar desse lugar ser do sujeito, me ocorre também o objeto a, que em algum momento da elaboração lacaniana também está lá. Em meu socorro me deparo com o seguinte: “Lugar onde finalmente se encontra com o que o causa, o objeto que ele é, esse ser só objetal, que, por definição, disso nada pode saber. Pois isso constituiria uma contradição nos próprios termos. Antecipo, com isso, desde já, o ponto onde chegarei. O puro corte do discurso, a afânise do sujeito que fala. É possível imaginar isso? Certamente que não”. Lembro que, em algum momento, escutei que é preciso manter os paradoxos, e a Psicanálise está cheia deles.

Já que introduzi o objeto a, entre as coisas faladas durante o trabalho, fiquei com esta: é a causa e o efeito. É por isso que é inacessível ao imaginário. Como algo pode ser o causador e ele próprio o efeito? Mas é assim que funciona, apesar de toda minha dificuldade. Segundo Lacan, “entre a causa e o efeito, furo, hiância, esse ponto de algo da ordem do não-nascido”; estou mais uma vez envolta com o ponto. Esse não nascido, será que tem a ver com o recalque primevo? Esse que não há significante que diga o que ele é? Que expulsou o significante desse lugar do furo? Mais questões…

Outro ponto chamou minha atenção. Antonio Carlos diz que se pode produzir o analista como objeto a, e que “é isso que permite dizer que a presença do analista faz parte do conceito do inconsciente”. E mais, “A análise é sempre perda de sentido, sucessão de perdas que faz série e que o analista não só testemunha, como induz, causa, escande, com sua presença, nesse ponto nodal que suspende o sujeito e mantém a pulsação”. Retorna para mim a questão que Alayde nos fez: “Qual a diferença entre perda e falta?” O que me ocorre é que é com a presença do analista como causa, ocupando esse lugar de objeto a, e pelo manejo da transferência – esta que age com o recurso da repetição, que por sua vez visa ao encontro com a falta, o que, no entanto, ocorre na falta de um significante que diga dessa falta – que surgem as perdas, “sucessão de perdas que o analista testemunha e escande”. É como se pode falar e do lugar que se pode falar dessa falta. Posso ter feito um verdadeiro carnaval com os conceitos.

Então, de que ponto se trata? Tenho a impressão de que este é um texto que se volta para a clínica, que o ponto ou pontos abordados estão voltados para a presença do analista circunscrevendo o objeto a, como parte do conceito do inconsciente, causando a movimentação da repetição e dando àquele que chega a possibilidade do reencontro faltoso. O analista não capturado no pedido de amor está em Outro lugar (topológico). Antonio Carlos encerra seu texto da seguinte forma: “[…] o ponto absoluto que estamos falando desde o início, esse único ponto onde o impossível pode fundar uma certeza.” Do meu lado, continuo sem saber.


 

*Texto escrito para a Jornada do dispositivo Acolhimento, Entrada e Fundação Permanente, realizada em novembro de 2021.

[1] ROCHA, Antonio Carlos. Dos conceitos freudianos ao objeto da psicanálise. Disponível em: www. tempofreudiano.com.br