O aleph, a letra e a morte

Maria Sílvia Antunes Furtado

Da leitura do livro da Virginia Hasenbalg-Corabianu[1] conduzida por Livia Rocha e María Victoria Borges Díaz na AEPM, destaco aqui alguns pontos pelos quais fui fisgada; depois de terminado o trabalho, parece que saltou algo em comum desses pontos aos quais me refiro: o inconciliável; a autora vai mostrando os impasses com os quais alguns matemáticos se depararam, a dificuldade que eles tiveram em demonstrar o que entreviram, e vai nos contando como a psicanálise e a matemática lidam com isso, passando por uma breve passagem pela literatura e outra pela religião. O livro de Hasenbalg é um Aleph?

O infinito atual de Cantor, o qual ele denomina Aleph, o seu teorema da diagonal e hipótese do contínuo vão nos conduzindo a conceitos da psicanálise. A narrativa vai nos mostrando como os avanços e dificuldades da matemática puderam dar algumas ferramentas para pensar com a psicanálise os impasses que Freud coloca, por exemplo, como limite para o fim da análise.

Cantor, na elaboração do infinito atual, em contraponto ao infinito potencial já consagrado pela tradição, nomeia-o Aleph, o que traz em si uma afronta à letra sagrada da tradição judaica e, por outro lado, uma afronta à ciência; é um ponto de impasse que cria resistência dentro do próprio campo da matemática, mostrando que algo de uma impossibilidade lógica poderia “quebrar” aquele campo, retirar os seus alicerces.

O infinito potencial seria esse infinito sem fim, que a tradição legou. Aquele que existe em potência, mas jamais é realizado, é ad eternum. E Hasenbalg-Corabianu nos diz que ele é imaginável no espaço e no tempo ou numa sequência de números sem fim e sem limite, e acrescenta que ele é pensável. E para ficar um pouco mais próximo da prática, nos diz que a ausência de limite pode, em um sujeito, mostrar a sua lógica: repetição ao infinito de uma conduta derivada de uma pulsão, como no caso da bulimia, ou toxicomania, ou fala verborreica […] enfim, do que remete a uma infinitização. O artigo de Freud de 1937, Análise finita e infinita, mostra um impasse ao final da análise: o homem e a mulher esbarram no complexo de castração: a inveja do pênis ou a ameaça de castração. Esse é um impasse para Freud, que diz que a análise, mesmo que seja didática, vai esbarrar nesse ponto, tem seu limite. Com o conceito de infinito atual, isto é, infinito em ato é possível ressignificar a concepção da estrutura psíquica?  E aqui fica uma questão: o infinito atual, como nos conta Borges, surge a partir de um vazio e é somente contando com ele que a letra pode tecer a nossa mortalha? Dar um lugar aos mortais?

Hasenbalg-Corabianu busca na literatura borgeana a metáfora do cristal do Aleph, no qual todo o tempo e todo o espaço do mundo podem estar contidos. E não é por mero acaso que o Aleph se encontra no porão, nos subterrâneos da casa. Vamos ao início do conto: Morre Beatriz Viterbo, mas o mundo, sem fazer o seu luto, continua a girar e afasta-se dela. E assim Borges compreendia que essa mudança era a primeira de uma sequência infinita. Hasenbalg-Corabianu afirma que é no contexto desse desaparecimento e “no lugar vazio deixado por sua ausência” que emerge estranho objeto, o Aleph. É daí que nasce tanto o objeto Aleph como o conto de Borges que se inscreve sob o título dessa letra.

Carlos Argentino, primo de Beatriz Viterbo, introduz um imaginário do infinito, aquele que observa o mundo sem se contar aí. Assim como Borges, ele é escritor, mas o seu posicionamento subjetivo leva-o à pretensão de escrever um poema que daria conta da literatura do mundo inteiro. Carlos Argentino revela a Borges o seu segredo, a sua fonte de inspiração quando se vê ameaçado de se separar desse enigmático objeto. Diferentemente de Carlos Argentino, a letra (Aleph/escrita) tem um Outro efeito sobre Borges. E a autora diz: “na linearidade inevitável de uma narrativa e com toda a sua arte de escritor, ele dá conta da presença sincrônica, no atual da narrativa, de todos os tempos e de todos os lugares da humanidade concentrados no Aleph”. Esse brilho do Aleph remete ao cristal da língua, ao uso poético da linguagem, à sua polissemia, e, por que não, ao que é próprio à psicanálise, a metáfora e a metonímia? Condensação e deslocamento, tecido do inconsciente. O sonho é um rébus, é preciso entendê-lo ao pé da letra, em sua estrutura de letra. É na sincronia que a metáfora do sujeito nasce na escrita, nesse intervalo cavado entre os significantes. Se Carlos Argentino, antagonista de Borges, está na perspectiva de uma escrita de caráter diacrônico, mais próximo da retórica do que da poesia, ali onde é passível ser laureado pelas letras, para Borges, entretanto, é possível um deslocamento – ainda que seja um pleonasmo: metonímico. O Aleph designa, então, esse infinito atual, em ato. Faz relação com uma significação, ordena o encadeamento do que é dito, tem efeito singular sobre cada um.

A língua, a partir de Freud e com Lacan, é um modo singular de produzir equívocos, nos é dito.  E a metáfora, diz Lacan, “brota entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia”. E, não é assim que Lacan nos ensina a ler o algoritmo em que ele subverte o signo saussuriano? Há uma barra que resiste à significação e um significante remete sempre a um outro significante que não está dado de antemão, tal como o exemplo que Hasenbalg-Corabianu nos dá dos diamantes/ditos amantes que a filha queria dar à mãe.

Com a psicanálise, o sentido ordenado pela sintaxe, pelo discreto do significante permite-nos um deslocamento. Aquilo que se quis dizer, se disse, mas aí está o ponto: o contínuo, isso da ordem da alíngua, fluxo ininterrupto, faz uma disjunção sintática, irrompe em outra cadeia e a psicanálise o faz entrar no discurso. Isso não fica fora, é um índice. Eis o paradoxo. De um lado, a ordenação do sentido pelo discreto do significante, uma sintaxe da língua e, por outro, o contínuo, cadeia portadora da equivocidade, marcada pelo contínuo.

O Aleph, infinito atual, aproxima-se do falo, um significante inominável que, assim como o Aleph tem esse caráter de sagrado; ele é velado, não aparece na cadeia sonora e nem é bífido; ele a ordena, mas está fora da cadeia. E como não lembrar do assassinato do pai primevo? O estabelecimento da função do pai assegurando a ordem? Há uma nominação latente, como diz Lacan em A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud: a metáfora é latente e a metonímia é patente. Mas há algo que escapa à ordenação, ainda que ela seja necessária para dar lugar ao sujeito.

Se a maneira de existir do sujeito é a do sintoma, própria à estrutura neurótica e o leva a uma repetição infinita, como vimos, como é possível ao sujeito renunciar a esse gozo, a isso que lhe dá existência? “Há uma outra possibilidade de existência que não seja no sintoma?” questão que nos traz Melman. A noite do trauma, da qual fala Lacan, seria o que marca algo de uma finitude, às custas do recalque, o encontro com o vazio, com a falta de sentido? Será essa deriva que nos leva ao sintoma, a uma sutura?

Mas, como vimos, há um paradoxo entre o discreto e o contínuo. O sintoma instaura uma crença. Amamos aquele que sabe.  Por que esse amor ao saber? A crença é supor que há ao menos um que sabe e que isso nos garantiria? O falo, como ordenador simbólico, é um ordenador de sentido, mas o Φ, um número irracional, infinito em sua escrita, não cessa de se escrever; ao ser inscrito em uma reta, ou em um plano cartesiano, entre dois números inteiros 1 e 2, ele jamais será atingido. Na reta, os pontos jamais se aproximarão dele; no plano, esses números formarão duas retas, uma do lado direito e outra do lado esquerdo de Φ, mas que tenderão ao infinito e esse encontro não é atingido, e aqui Hasenbalg-Corabianu o aproxima do objeto a. Ele será sempre ladeado por um furo.

Então, podemos dizer que tudo se dá entre um ordenamento que se instaura a partir do Um marcado pela ausência, a significação fálica, que constitui a ordem do discreto e, nos é mostrado pelo Aleph, o infinito atual e, por outro lado, por dimensão infinita, próxima do irracional, Φ ligado a uma ordem infinita, próxima da dimensão do grande Outro, do infinito potencial?

Carlos Argentino guiava-se pelo cristal da língua, ao passo que Borges guiava-se a partir do cristal, o Aleph; ele pôde ser afetado pelo cristal e toma-o como agente da sua escrita, a isso que o Aleph o leva, ao fragmentado, ao condensado, ao paradoxal. Há possibilidade de se abrir mão de um sentido que garantiria a existência. Carlos Argentino acreditava que o Aleph ordenava toda a sua escrita e separar-se disso que o garantia na escrita era impensável. Duas posições, duas disposições.

Lembro agora do tempo lógico, que não é um tempo cronológico, não segue na diacronia, mas na sincronia.  A asserção da certeza antecipada está no bojo do instante de ver, mas é preciso um tempo para compreender até que se chegue ao momento de concluir, e isso não é possível sem que o sujeito ali se conte a partir do Outro. E não é isso que uma análise nos possibilita?


*Texto apresentado na Jornada do Trabalho de Leitura “De Pitágoras a Lacan, uma história não oficial da Matemática”. A jornada ocorreu em agosto de 2020 e contou com a participação da psicanalista Virginia Hasenbalg-Corabianu.

[1] De Pitágoras a Lacan, uma história não oficial da Matemática para o uso dos psicanalistas, de autoria de Virginia Hasenbalg-Corabianu. Título original: Hasenbalg-Corabianu, Virginia. De Pythagore à Lacan, une histoire non officielle des mathématiques à l’usage des psychanalystes. Éditions érès, 2016.