A porta de entrada
Por mais de uma vez escutei Melman falar da importância da porta por onde se entra e sua determinação naquilo que se estabelece para o sujeito, passado seu umbral. Minha porta de entrada na Psicanálise deu-se por minha análise pessoal, tendo a leitura de meus significantes aberto algo absolutamente novo. Minha porta de entrada na leitura de Lacan deu-se através do Seminário 20, “Mais ainda”, único seminário de Lacan que havia sido traduzido até então. Daquele primeiro encontro guardei a lembrança de um acontecimento enigmático. Ainda que eu não entendesse nada do que lia, a vontade de continuar a ler era inquebrantável. Ele me dizia alguma coisa. O retorno de minhas palavras ao falar sobre isso à minha analista foi mais inquietante ainda: “— continue a ler, pra acostumar o ouvido. ”
A gente pode acostumar os ouvidos, mas a gente nunca se acostuma do ouvido.
Naquele instante em que eu vi onde estava (me precipitando) concluí, (apressadamente), colocando os meus dois pés dentro. E agora, depois do tempo para compreender meu passo, só me interessa passá-lo adiante.
E assim, estou hoje com vocês no Encore, que nos ancora aqui, juntos, na nossa singularidade. Encore, de novo juntos, e mais e ainda. O infinito e além! Citando o Buzz Lightyear.
“A nuvem da linguagem faz escrita” [1]
Em Lituraterra Lacan nos diz que seus escritos são “cartas abertas”.
Como a carta “faz peripécias” e a “escrita é um rastro onde se lê”, o Seminário Encore, que para mim é um escrito, ainda que transcrito de uma fala, fez aluviões e deslizamentos, abrindo canais a se precipitarem em enormes e profundas crateras, alguns rastros podem ser lidos aqui.
O significante, em suspensão, feminiza
“As formações do inconsciente são efeitos de significante, (e) não autoriza a fazer da letra um significante, nem a lhe atribuir, ainda por cima, uma primazia em relação ao significante.” [2]
No Seminário da Carta Roubada, Lacan nos chama atenção para os deslizamentos da carta numa tríade de personagens que a detém por um determinado tempo. A rainha que a recebe, o ministro que a rouba diante do olhar da rainha e Dupin, o detetive contratado para resgatá-la, o que a polícia não fora capaz de fazer. Dupin repete com o ministro a sua (dele) própria ação em relação à rainha, isto é, furta a carta que, disfarçada, se escondia diante dos olhos de todos. Durante o tempo em que ela fica detida com o ministro, ele apresenta uma mudança de identidade, como se houvesse sido feminizado, e a mesma coisa se dá quando a carta está detida nas mãos de Dupin. A feminização é mostrada por Lacan através de traços que surgiram neles. O próprio lugar onde a carta se oculta diante dos olhos é descrito por Lacan de uma maneira que parece uma explosão do feminino:
“Exatamente como a carta/ letra roubada, qual um imenso corpo de mulher, se esparrama no espaço do gabinete do ministro, quando ali entra Dupin. Mas como tal ele já esperava encontrá-la, e só lhe resta, com seus olhos velados por óculos escuros, desnudar esse maiúsculo corpo.
E é por isso que, sem ter tampouco precisado, com toda a razão, escutar ocasionalmente atrás das portas do Prof. Freud, ele vai direto até onde entoca e se abriga o que esse corpo é feito para esconder, num belo miolo para onde o olhar desliza […]. Vejam! entre as ombreiras (que também se traduziria como pernas) da lareira eis o objeto ao alcance da mão que o arrebatador só precisa pegar…” [3]
A carta, que podemos ler na palavra francesa como carta/letra, “lettre”, aqui está como o significante em sua primazia sobre o sujeito. Significante que transforma sem que se saiba qual é a mensagem escrita na carta. Lacan escreve em Lituraterra que “É a carta retida que mostra seu fracasso onde faz furo.”[4]
A questão na qual somos lançados, com Lacan, então, “é de nossa implicação, como analistas, ao nos colocarmos como emissários no circuito simbólico de todas as cartas roubadas que, por algum tempo, a partir da transferência, ficam conosco ‘en souffrance’, sem serem retiradas.” Lacan nos pergunta: “E não é a responsabilidade que sua transferência comporta que nós neutralizamos, fazendo-a equivaler ao significante mais aniquilador possível de toda a significação, isto é, ao dinheiro?”[5]
O sujeito recebe sua própria mensagem do Outro de uma forma invertida, eis por que toda carta sempre chega ao seu destino.
E se a língua não fosse tirânica? E se o significante fosse multidimensional?
“Não posso dizer nada.
Não posso escrever nada.
Haverá uma escrita não narrativa. Um dia isto virá. Uma escrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavras sem apoio de uma gramática. Extraviadas. Ali, escritas. E logo deixadas de lado.”
(Marguerite Duras em Escrever)
Na lição de 15 de maio de 1973, Lacan faz a seguinte afirmativa[6]:
“É muito precisamente isso que distingue o que encontramos na linguagem, na língua corrente, e que é sustentado pela metáfora muito difundida da cadeia. Ao contrário dos aros de barbante, elementos de cadeia podem ser feitos, isso se faz, isso se forja. Não é difícil imaginar como isso é feito: o metal é torcido até o momento em que se pode soldá-lo, e a cadeia é assim algo que pode ter sua função, para representar o uso da língua. Sem dúvida, não é um suporte simples, seria preciso, nessa cadeia, fazer elos que fossem se prender a outro elo um pouco mais adiante, com dois ou três elos flutuantes intermediários, e compreender também por que uma frase tem uma duração limitada. Ora, tudo isso, a metáfora (da cadeia) não pode nos dar.”[7]
O analista lê um texto fragmentado. O sujeito do inconsciente lê. Sujeito que não só sabe, como aprende a ler. Mas este texto, ainda que lido, não há como reescrevê-lo. Um texto sem linearidade, sem duração, sem deixar marcas. O sujeito do inconsciente é corte entre o significante que o representa para outro significante, é efeito do funcionamento da cadeia significante. Sua entrada aí deu-se através da simbolização de uma falta, alternância da presença e ausência simbolizada. O sujeito evanesce no significante que se dá a saber; o traço se apaga no significante um, traço que apagara a coisa, apenas deixando um lugar de retorno do gozo. “S1, significante do gozo mesmo.”
A escrita “inatangível” para usar um neologismo de Lacan, aspira a escrita do gozo, inspira a poesia e transpira na cavalgada da escrita dos místicos. E porque não dizer, isso pira.
Como retornar à letra o que a letra escreveu no corpo? Como escrever, no linear do significante, do Um, o que é sua própria falta? Do que fora apagado do traço só restou seu unário.
Ela, a falta, é própria enquanto do significante que falta no Outro, própria enquanto aquela que permitiu a entrada na linguagem, no simbólico, nas letras, no que se pode escrever. Há Lei que é da mesma forma a Lei da linguagem. “É a insistência da letra razão do inconsciente”, a letra que é litoral ao jogar com literal, bordeja o furo e marca a distinção de territórios, “Ela desenha a borda do furo no saber”. [8]
Lacan disse: “ … vocês podem ler Joyce, … vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita… Joyce é um longo texto escrito… os significantes se encaixam, se compõem, … penetram uns nos outros, é com isso que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas é realmente o que há de mais próximo daquilo que nós, analistas, graças ao discurso analítico, sabemos ler, é o que há de mais próximo do lapso.” [9]
Que a linguagem saiba brincar com a escrita, no entanto, não permite que se diga, que se escreva o gozo do Outro, imputado ao feminino e aos místicos. Ele é fora do campo do saber, é verdade que se o sente, mas não há como dizê-lo, escrevê-lo. “A verdade em questão na psicanálise é aquilo que, por meio da linguagem, quer dizer, pela função da fala, aproxima-se de um real.”[10]
Com a mística Santa Teresa, temos em seus textos o testemunho dessa tentativa, mas ela diz textualmente que aquilo que ela escreve é a verdade, e que o saber estaria do lado dos homens da igreja, a quem ela encaminhava o que escrevia. “O que eu sei bem, é que digo a exata verdade.”[11]
O trecho tão conhecido da poesia de São João da Cruz afirma:
“Eu não soube onde estava, porém quando ali me vi, /Sem saber onde estava, /Grandes coisas entendi;/Não direi o que senti, /Que me quedei não sabendo, /Toda a ciência transcendendo.”[12]
O gozo místico implica num sofrimento na alma e no corpo. Santa Tereza escreveu: “Eu sei que uma pessoa (a pessoa a que ela se refere é ela mesma) que, não sendo poeta, lhe acontecia fazer de súbito coplas muito sentidas revelando a sua dor; não feitas por sua inteligência, mas para gozar mais a glória, que tão saborosa dor lhe dava, queixava-se dela ao seu Deus. Todo o seu corpo e sua alma queriam que se despedaçasse para mostrar o gozo que com esta pena sente.”[13]
Sua escrita seria ainda um gozo a mais além daquele que ela teria vivido no transe místico.
“O sintoma é valor de verdade” [14]
“Só temos escolha entre enfrentar a verdade ou ridicularizar nosso saber” [15]
Para a psicanálise, na relação com o gozo é a fala que garante sua dimensão de verdade. E ela, a verdade, só pode semidizer-se, pois que “o inconsciente é que o ser, falando, goze, e que não queira saber mais nada disso, não saber nada de nada.”[16]
Abrimos a porta àqueles que vêm nos falar de seu sofrimento. Sofrem em seus sintomas, que não cessam de se escrever, sofrem em seu gozo de idiotas, isto é, ignorantes, isto é, não querem saber daquilo que os causa. Tomados por esta paixão, por este pathos, a psicanálise lhes permite uma outra via, e por que não dizer, uma outra vida. Lacan afirma que ela é “dom de Freud”. [17]
Que “ele nos disse que o inconsciente tinha ao menos esse pequeno grau de abertura, graças ao qual o sofrimento (pa de cer) podia ser dito; que havia aí algo que, verdadeiramente, e não como fora dito até então, o transcendia.”[18]
Numa análise, o desprendimento, a “desamarração” de alguns significantes, permite atingir a fantasia fundamental. Como neuróticos, enquanto sustentamos o lugar de objeto imaginário do desejo do Outro não há nada que possamos dizer que vá além de queixas e culpabilizações. O objeto não fala, nem phalo; está fora do campo da linguagem. O analisante, a quem se dá voz ao pedir que numa análise fale de tudo, que diga besteiras, suas bobagens — como dizia o pequeno Hans —, dá a escutar os significantes que o determinaram, passagem evanescente de sujeito. Barrado, ele se diz no seu esvanecimento. O encontro marcado é com a falta que lhe constitui.
Mas o gozo que há na fala, no sentido, ainda que possa advir um novo sentido, pode prorrogar indefinidamente o dizer. Encore.
O analista no lugar do semblant do objeto causa do desejo sustenta, ao preço de suas palavras, de seu eu e do mais íntimo de seu ser, a possibilidade de que: “o que pode se saber venha no registro da verdade, o mais próximo possível de que falando nós nos aproximemos do real.”[19]
O final de uma análise não pode ser formulado com um “não tenho mais nada para dizer”, porque sempre é possível dizer mais alguma coisa. Mas se aceitamos que cada novo sentido altera um tanto a fantasia, na medida em que ela é realidade psíquica, em que é a tela sobre o enquadre na qual cada um formula o que lhe sustenta, então podemos admitir que os cortes — quer sejam cortes metafóricos ou metonímicos —, as interpretações — citações ou enigmas —, levam o sujeito a se encontrar com o fundamento de sua fantasia na qual se ancorou o desejo que lhe constituiu. Scilicet, você pode saber… da castração: não existe relação sexual, o Outro sempre será hétero, altero.
Uma análise trans-borda do sentido, do ser, ao significante puro e à letra; do lugar de objeto do desejo do Outro, de objeto do gozo do Outro, ao de desejo puro, para fazer valer o lugar da falta que nos permite ex-sistir. É no desassossego que nos lançamos, e o lance é dado de saída. Entrar na aposta é ceder daquilo que foi apostado. O preço da entrada será cobrado na saída: a perda não recobre mais a falta.
Um novo amor
O amor não se declara, não podemos declará-lo verdadeiramente. Ele escapa à fala. Quando os objetos se tornam simbolicamente signos do amor do Outro, a Demanda não cessa de se repetir, “porque não é isso”[20]. Quanto mais se dá, mais escancaramos a falta. A declaração de amor é a demanda de recebê-la de volta.
Haverá uma nova maneira de amar, além daquela que Freud denunciou? Um amor que não seja narcísico? Amar no outro o que lhe falta e não o que me falta. Dar ao outro sua falta, sem temer que ele goze da sua castração. Um amor que verdadeiramente permitisse ao gozo condescender ao desejo.
Entre o homem e o amor,
Existe a mulher.
Entre o homem e a mulher,
Existe um mundo.
Entre o homem e o mundo,
Existe um muro.
(Antoine Tudal citado por Lacan nos Escritos).
Voçoroca, Falésia, Ravinamento, Erosão
Voçoroca. Pois que é vossa a roca com a qual, assim como a barriga da aranha, teceis. O fio é sem fim, mas o ponto o fixa e bordeja o furo. Variação: boçoroca, pois a bossa também é nossa, ainda que não tão nova.
Falésia. Falas i(a). Com a imagem do teu corpo que abandonastes ao Real. Fala fala-ser!
Ravinamento: erosão. Eros são todas as palavras sobre as quais não cedemos. Freud as quis assim na psicanálise. Assim, sim. A psicanálise fala do sexual pois que não é possível escrever a relação sexual como tal.
Pós-escrito: Relendo o texto, percebi nele mais do que o retorno das marcas do estudo do Seminário Encore. Estão aqui também outras, advindas tanto dos Escritos como de outros Seminários de Lacan.
Foi então, no a posteriori, que reconheci as voçorocas resultantes da enxurrada que se abateu sobre mim quando o escrevia.
* Trabalho apresentado no Encontro sobre o Seminário Encore realizado pelos Cartéis Lacanianos em 03/06/2023.
[1] Lacan, J. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, edição não comercial, 2010.
[2] Ibidem.
[3] Lacan, J. O seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
[4] Lacan, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003.
[5]Lacan, J. O seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
[6] Lacan está fazendo uma distinção entre a construção e o uso do nó borromeano de múltiplos aros e a metáfora da construção de uma cadeia de significantes. Aqui, interessa-me trabalhar com esta última.
[7] Lacan, J. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, edição não comercial, 2010.
[8] Ibidem.
[9] Ibidem.
[10] Lacan, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
[11] Santa Teresa de Ávila. Seta de fogo. Tradução, prólogo e notas de José Bento. Rio de Janeiro: Editora Assírio & Alvim,1989.
[12] São João da Cruz. Obras de São João da Cruz traduzidas pelas Carmelitas descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Editora Vozes. SCRIBD.
[13] Santa Teresa de Ávila. Seta de fogo. Tradução, prólogo e notas de José Bento. Rio de Janeiro: Editora Assírio & Alvim,1989.
[14] Lacan, J. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, edição não comercial, 2010.
[15] Ibidem.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem.
[19] Ibidem.
[20] Lacan, J. …ou pior, livro 19. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012.