Em dezembro de 2023 comemoramos nossos vinte e sete anos com as Jornadas de Cartéis sobre o Seminário 8 de Lacan, 1960-1961 – A transferência em sua disparidade subjetiva, sua pretensa situação, suas excursões técnicas.
Eu havia proposto na AEPM, aos Membros e Candidatos à Formação, a travessia de mais um Seminário de Lacan. A aposta foi feita, o trabalho foi assumido, ler o seminário A transferência no presente e a partir de nossa experiência. Abrir nossas questões a partir do que Lacan nos trouxe de suas questões e avanços teóricos sobre um dos conceitos fundamentais da psicanálise.
Érôménos – Érastès, Lacan faz um passo, com Sócrates, e introduz no amor a falta, substitui amor por desejo nas piruetas do éros-amor e do éros-desejo. E nos surpreende ao dizer que “uma de suas invencionices, amar é dar o que não se tem”, faz eco ao que está no texto do Banquete, no índice 202ª: “aneu tou ekhim logou dounai – dar a fórmula sem tê-la”.
O mito do nascimento do amor, que só se encontra em Sócrates — segundo Lacan, traz o amor nascendo da ação daquela a quem falta, Penia, aquela que deseja, em direção àquele que, tendo, não sabe de nada, ele repousa, ele é Poros. E Lacan conclui, não sem um certo senso de humor, que “é o masculino que é desejável, é o feminino que é ativo”.
Entre érastès e érôménos, Lacan não diz que há um giro, mas, sim, que há um salto.
Sócrates recusa Alcibíades, melhor dizendo, recusa o lugar no qual Alcibíades queria colocá-lo, e ao fim, aponta-lhe Agatão. Atendendo à sua demanda, ele faz o elogio de Agatão, porque ele sabe, ele lê, que o que Alcibíades quer é ser amado por ele, Sócrates, enquanto ele mesmo, Alcibíades, ama Agatão. Isto é, que ele seja o objeto de Sócrates e que Agatão seja o dele. Ao fazer o elogio de Agatão, Sócrates pede a Alcebíades o que este lhe pedira. Sócrates desvia-se do desejo de Alcibíades porque ele sabe que o que ele deseja, Sócrates não tem.
Tanto em Sócrates quanto em Agatão, Alcebíades só visa ao agalma. Sócrates sabe o que é o amor e por saber, se engana. Ele desconhece a função essencial do objeto visado constituído pelo agalma. Lacan nos lembra que Freud nos havia mostrado que o essencial do enamoramento está no jogo entre o eu ideal, o ideal do eu, e os objetos. A imagem narcísica vigorando forte no eu ideal, “a encarnação imaginária do sujeito”.
Ao fazer referência ao momento em que Diotima diz no Banquete que o amor não é um deus, mas, sim, um demônio que envia aos homens as mensagens dos deuses, Lacan afirma que o demônio de Sócrates é Alcibíades. Os deuses só se revelavam no escândalo, no ultrapassamento de todas as regras. Quando Sócrates aponta para Alcibíades Agatão, aquele que está ali como o belo, o desejado, o que brilha naquele momento, ele indica que seu lugar é o do desejante. Ele não nega seu desejo por Alcibíades, e ele vai, na verdade, apontar para ele a possibilidade deste lugar de desejante, a passagem possível do querer ser amado para o desejar.
É nesse ponto que Lacan vai além. O amor é narcísico e o desejo visa a um objeto que não há. O brilho dos objetos parciais é logro, e esconde a falta do objeto. A revelação de Lacan, de “que as coisas vão do inconsciente para o sujeito que se constitui na sua dependência, e remontam até este objeto núcleo que chamamos aqui de agalma”, é o que ele chama de a estrutura que rege a dança entre Alcibíades e Sócrates.
O desejo é metonímico e não encontra nenhum objeto. O desejo é falta que se recoloca deslizando sempre. O desejo é o desejo do Outro. Ler essa afirmativa de Lacan nem nos surpreende mais, se a interpretarmos apenas no sentido de que desejamos o que é objeto de desejo para o outro. Isso é matriz de nossa fantasia. Mas, enquanto desejo do Outro, isso aponta para o “Che vuoi?”, para a falta radical que divide o sujeito. Não há significante do desejo do outro, apenas significante da falta no Outro. Não há amor como resposta a qualquer demanda, há apenas falta.
A transferência é amor. Mas amor de quem? Por quem?
A literatura psicanalítica acusa Breuer de ter fugido desse amor. Mas será muito diferente quando os analistas inventam e se apoiam no conceito de contratransferência como guia e bastião das análises? Não será mais uma forma de fugir do amor de transferência? E a análise das resistências que surgem no percurso de um tratamento? Freud nos disse que seu surgimento é uma indicação valiosa da transferência. De que a análise chegou e bateu num ponto importante. O Inconsciente se fecha. Mas se os analistas não se esforçarem para mantê-lo fechado, o inconsciente fecha para se abrir. Sim. Toda resistência é do analista. E isso quer dizer que os analistas continuam correndo do amor de transferência porque é insuportável sustentá-lo se o analista não tem onde ele mesmo se sustentar. Se é uma verdade puída que a transferência é o suporte das análises, também é verdade que é preciso suportá-la, dar suporte a ela.
Nesse seminário Lacan nos mostra a partir do que, ou melhor, de onde. Ele nomeia o desejo do analista como o que vai dar suporte ao analista na transferência. Qual é a posição do analista? “Trata-se daquilo que está no coração da resposta que o analista deve dar para dar conta do poder da transferência. Essa posição, eu a distingo dizendo que no próprio lugar que é o seu, o analista deve se ausentar de todo ideal do analista.” Se ausentar de todo ideal, é não ter mais nada onde se agarrar! Certamente uma análise só é empreendida por alguém que se submete a uma análise, à supervisão e à formação.
Lacan mostra o jogo entre o grande I, i(a), e o pequeno a, e introduz a função do objeto pequeno a enquanto objeto do desejo. Seu lugar deve ser situado no ponto onde surge a interrogação “Che vuoi?”. A partir de onde vem a fantasia para fixar o lugar do desejo. Esse objeto, diz Lacan exemplificando-o no nível da demanda oral, “ele não é somente o que se toma, mas também o que se rejeita, o que se recusa, porque já é outra coisa”. Tratando-se do objeto do desejo, é sempre de outra coisa que se trata. No campo do desejo, não há objeto que valha mais que outro. Se é possível sustentar um lugar a partir do desejo, não pode ser um “desejo de”, mas apenas desejo, seu lugar vazio. Sustentação de um lugar vazio. E se insistirmos em pensar “desejo de”, podemos dizer desejo de levar alguém a esse ponto de se encontrar com esse vazio. Desejo de desejo.
Em nossas Jornadas pudemos trabalhar com todos esses textos que estão aqui e que fizeram com que, ao final, tivéssemos o que comemorar. Cada um do lugar onde está em seu caminho na psicanálise pôde enunciar em seu texto o que restou do longo período de trabalho no seminário da AEPM e nos Cartéis.
Eu os convido a ler e de tempos em tempos, quem sabe, reler, o testemunho do nosso trabalho.
* Apresentação da Publicação que reuniu os textos trabalhados durante as Jornadas de Cartéis em dezembro de 2023.