Como o analista costura o tecido trazido num pedido de análise?

Valéria Maia Lameira

Para encaminhar uma questão a partir da passagem pelo Seminário XVII de Lacan, a dificuldade já se coloca de saída, na medida em que me volto para uma advertência mostrada em seu Seminário anterior, De um Outro ao outro, que diz que a vida é feita de um giro (um grito) na incidência da História; de uma descontinuidade, corte! Lacan interroga os analistas: queremos ir adiante com as questões do sujeito, de onde Freud deixou a psicanálise, nos “rochedos da castração”? Estamos dispostos ao novo? Além do Seminário XVI, contei também com os caminhos descritos por Laurence Bataille, para me aproximar da proposição dos discursos de Lacan, que concerne ao tratamento que se pretende analítico.

Arrisco dizer que não me furtar a formular uma questão dá indícios de minha disposição em ir adiante, mas será que estou no caminho? Como sustentar teoricamente o que acontece na prática, dentro do consultório? Será que eu sei? Não! Não sei, o saber é inconsciente, mas se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, devo me colocar em posição de escutar nas narrativas, metáforas e metonímias, quem está falando pela boca desta pessoa que fala Outra Coisa, de que lugar parte sua fala.

É certo que iniciei uma prática clínica acreditando estar bem-posicionada, até que me encontrei com a Associação Escola de Psicanálise do Maranhão, onde entrei, com um pedido para participar de um grupo de leitura do Seminário XVII e, naquela época, nem me dei conta que Lacan advertia para o fato de que a referência ao complexo de Édipo de nada vale numa análise, senão para o que extrai do texto de Freud, isto é, a castração, a divisão do sujeito, o objeto Causa de desejo. O estudo teórico, indispensável à formação do analista, repercute em meu modo de trabalhar, na medida em que me faz reconhecer dificuldades para sustentar teoricamente minha prática.

Pautada no que Freud nomeou Além do princípio do prazer, sem forçar um enquadre teórico, busco adentrar nas formulações do que pode estar de acordo com a proposição lacaniana que diz que o sujeito é dividido pelo que lhe falta de marca instintiva, pelo fato de vir ao mundo de linguagem, numa rede discursiva adornada de significantes, os quais lhe marcaram; um Outro o marcou, sem que ele nada saiba sobre Isso. O falante busca cobrir esta falha aberta se dirigindo ao Outro, em quem supõe saber, alheio ao fato de que no Outro não há um significante que possa emitir uma resposta definitiva que lhe permita viver em paz. Aliás, a paz não é para os vivos.

Parto do entendimento de que a psicanálise propõe dirigir sua atenção às teorias construídas pelos falantes, por isso, uma teoria da prática que conta as falhas, os ocos da narrativa, e me interrogo sobre o quanto sou capaz de coser um discurso às referências de Lacan; situar minha prática, a cada vez, a cada fala que se dirige a mim com um pedido de tratamento. Trata-se de um pedido de análise? E, ainda que seja, está este sujeito disposto a pagar pelo que pede? Penso que a direção do tratamento deve ater-se nas entrelinhas das narrativas, acompanhando suas associações, repetições, que servem ao analista para traçar suas diretrizes e dar uma chance, pela palavra, a algo do real. Contudo, não são poucas as vezes em que me pego desconfortável na “situação analítica”, a me perguntar se minha diretriz está de acordo com aquela estabelecida por Lacan.

No curso do ensino de Lacan, desde “o inconsciente estruturado como linguagem”, encontramos formulações, ferramentas a dispor do psicanalista, na tarefa de dirigir uma análise. No curso dos encontros preparatórios ao Seminário de verão da ALI, ao me aproximar da teoria dos discursos de Lacan, proposta em seu Seminário XVII, O avesso da psicanálise, certifico que o ser falante se inscreve numa estrutura mínima de linguagem, na rede de significantes que constrói a partir da falta de um significante que ele chamou S1. A partir daí, tento situar minha prática, desde as primeiras entrevistas, atenta às palavras, sua amarração, que forma discursos, e tem o inconsciente como diretor do texto que é contado, com atenção voltada para o que configura um pedido de análise, a partir de uma falta. Qual é o meu trabalho ali?  Como ir com alguém ao lugar de onde partiu?

Vou considerar como questão, que quer o Outro de mim? Um triscar da castração, brecha própria à estrutura neurótica, abre-se, quando todos os seus objetos, não conseguem tapar a falta. Quando uma mulher me procura e diz “eu tenho um problema”, ela vem pedir ajuda, auxílio para lidar com o buraco de onde o desejo se articula, onde o simbólico ganharia peso. É ela que, em condição de falante, de mulher, de objeto, mascara-se. Do sentimento de fracasso às lembranças familiares e infantis, um primeiro passo para a reflexão de uma clínica, referida ao discurso psicanalítico. É neste pequeno passo que me detenho, por ora.

Estou certa de que algo do discurso, nas entrevistas, se deslocou e, como diz Alayde Martins, não por obra do Espírito Santo. Então, me esforço para avançar no estudo da proposição de Lacan, de sua teoria dos quatro discursos. Acredito que assim possa tomar a condução de um tratamento com a responsabilidade que favorece que uma análise não seja interrompida. Para ir adiante neste percurso, conto com minha análise, supervisão e o trabalho de alguns outros na instituição, para dividir e esclarecer quanto aos termos e lugares de onde uma fala parte, a quem se dirige, qual sua produção e verdade.

Recorro à Bataille, ao seu trabalho com os discursos de Lacan, com a leitura clínica a partir de termos em determinados lugares na estrutura, para seguir em frente. Então, vou arriscar dizer que, em uma primeira entrevista, aquilo que uma pessoa vem pedir, ela mesma não sabe, então, põe-se a falar. Nessa circunstância, o que está no lugar de agente é o significante-mestre, S1, um significante qualquer que no ato de se colocar na rede para representar o sujeito para um outro significante, excluiu o sujeito de qualquer representação possível. Este é o discurso do Mestre, um discurso que tem S2 no lugar do saber, recurso relativo à falta. No lugar da produção, coloca tudo que seu ideal almeja, tentativa vã de escapar à divisão.

Como o tempo é o senhor de todas as Coisas, e condição para uma jovem tornar-se uma mulher, e a transferência, o que institui uma análise, arrisco dizer que o momento das entrevistas permite um passo importante que é a passagem do sujeito barrado do lugar da verdade, ao lugar de agente. É quando a analisanda passa da queixa, do gozo, às lembranças infantis; ao seu lugar no sexo, à castração, de sua falta-à-ser, que deposita sua confiança na escuta de quem dirige o tratamento, em quem acredita que sabe – S1 – para lidar com uma situação que lhe causa nojo, objeto a, em posição de verdade, configurando o que Lacan escreveu como discurso Histérico.

Nesta disposição, quando o falante busca no outro a resposta pronta para o que lhe falta, se ali encontra um analista, ou seja, o objeto a no lugar de agente, que em vez de explicações, repletas de atribuição de sentidos, abre a possibilidade de questões que implicam sua queixa, seu gozo, seu desconforto, sua carne, há aí uma chance de se produzir um novo saber que é a resposta do sujeito dividido em lugar de trabalho no discurso do Analista.

Deste modo, meu trabalho é trabalhar, tentando sustentar minha clínica na direção do (in)suportável do desejo, calando e falando, na via onde se tecem sintomas e angústias, escutando. Apostando que a partir dessa aproximação com os tetrápodos de Lacan, dirijo um tratamento analítico de maneira diferente.


 

*Texto escrito a partir do dispositivo Trabalho Preparatório para o Seminário de Verão da ALI – 2024, coordenado por Valéria Lameira e Virginia Guilhon.