Primeiramente, achei importante nos assumirmos como um cartel, pois ter mantido o nome de Cartéis Lacanianos não tinha, me parece, a ideia de nos assegurarmos quanto a isso. Então, entendi a pergunta também assim: desde que começamos nosso trabalho, sem a leitura do seminário dirigida pelo Antônio Carlos, essa formação (que não deixa de ter sido indicada por ele) podemos sustentar que é um cartel? Esse funcionamento, poderíamos vê-lo, dizê-lo através das superfícies topológicas que estamos estudando no Seminário A Identificação?
As questões e os pontos levantados por Dionysia me fizeram pensar bastante no furo, na falta, no buraco.
No trabalho do cartel poderíamos contar com a falta em cada um, de cada um. O +1, também, só podendo encarnar sua função a partir daí, da falta, já que é daí que ele funciona.
Dionysia fala da vizinhança. Vizinhos mantêm-se em lugares próximos, mas diferentes. O discurso de cada um pode manter-se no respeito, no limite a essa diferença dos lugares. Não haveria a certeza dos fechamentos conceituais da mestria, mas sim a busca do entendimento do texto, sabendo que há um percurso que só é possível porque cada um conta com o que vem do outro. Assim, esse outro podendo ser qualquer um, que conta, porque sua palavra entra, a cada vez, para os outros; sendo assim, cada um é representante do Outro barrado, porque sua palavra não fecha, não serve de denominador comum, não cala os outros, mas abre o buraco para cada um colocar o que é seu. Sem fechamento, mas com um entendimento possível, também a cada vez, avançamos um pouco mais no trabalho de leitura do Seminário. Ele próprio, o Seminário de Lacan, deixando claro, para nos darmos conta, de que ele não fecha. Podemos concluir, mas concluir não é fechar. (Eu não acho que funcionar em cartel seja uma idealização, algo inviável. A proposta do cartel foi indicada por Lacan para aqueles que estavam em análise, aliás, sua proposta inicial foi feita para os analistas).
Então, posso considerar que se eu escuto cada um de meus pares, se posso suportar o caminho absolutamente ímpar por onde cada um caminha, se é possível que isso seja sustentado pelo mais um e por cada um no cartel, então, podemos apostar nesse trabalho. Apostar não é uma coisa simples, como nos mostrou Lacan. Apostar é perder algo na entrada, pois o que é seu e foi posto em jogo, para que se pudesse entrar no jogo, está perdido. Assim, acredito que para funcionarmos juntos, cada um perde de entrada um tanto de seu funcionamento narcísico. Sem prevalência de um saber, e sim fazendo funcionar a falta como agente, o cartel é para cada um o lugar onde o que vale mais é colocar um grão para fazer o trabalho avançar naquele encontro, naquela vez. A próxima ficando de novo em aberto ao desejo de cada um.
A função do +1 é fazer isso funcionar. Corte, convocação, circulação da palavra de cada um, incluindo a sua, que, ao contrário da palavra do líder do grupo, não fecha com o enunciado de um saber arrumado, elucidado. Nesse ponto, outra vez, me aparece a ideia de que o cartel só é possível para aqueles que já percorreram uma análise, isto é, que estão em análise, já que a única coisa que sustenta o lugar do +1 é a falta constitutiva de cada um. E que, a cada encontro, o cartel abre para se fechar, de novo.
Sobre a questão da superfície topológica do cross-cap, não tenho como pensar o cartel com ela. Vou apenas manter a interrogação e trazer aqui o ponto em que Lacan pergunta o que essa superfície sustenta. E responde: o lugar do buraco. “Essa superfície assim estruturada é particularmente propícia a fazer funcionar, diante de nós, esse elemento, o mais inapreensível, que se chama de desejo enquanto tal, em outras palavras, a falta.”
*Este texto está incluso na publicação do Cartéis Lacanianos: O cartel é uma superfície topológica? (2021)