O Traço Unário e o Nome

Dionysia Rache de Andrade

O que sabemos do traço unário abordado por Lacan no processo de identificação? O traço foi recolhido em Freud, na referência à segunda forma desse processo. Einzinger Zug já traz o unário que vai ser ampliado por Lacan e traz consequências. Trata-se inicialmente de um signo que se transmuta em significante ao apagar a coisa que, de inacessível, fica maiúscula, Coisa. E Lacan vai longe na procura desse traço.  Vai encontrá-lo na expressão do caçador, lá no paleolítico, que registra marcas nos ossos… cada traço, cada um.  O que eles dizem?

Algo sobre a caça, possivelmente, experiência de vida de então. Mas o que cada um diz? Falta enredo, mas há representação de uma escrita, chance do sujeito, ele começa a sua alfabetização. Lembrando que, como diz Lacan, a linguagem preexiste à escrita, já então aí os vestígios da linguagem.

O traço mantém uma exclusão, ele diz que não diz, explicita um vazio, o qual entendido como perda vai dar uma direção ao sujeito, um destino de busca, a procura de um encontro.

Mas o que mesmo que cada traço diz? Basicamente que ele é um, e a série que inaugura composta por outros uns se sucedem como traços que podem até ser idênticos, mas que são distintos. Cada um só diz a sua diferença. Mesmo sem saber contar o sujeito que daí advém, em nascença, já conta.

Esmiuçando, reconhecemos no traço o valor do que vai ser lido como representação, portanto algo que se diz em perda, uma coisa ausente.

Esse traço, inaugural de um sujeito no seu processo identificatório vai sendo abordado por Lacan, acho que não à toa, na marca na qual se sustenta a vida desse caçador primitivo, reconhecendo-o como signo, como significante, como letra (não é simples esse percurso…).

O traço, já dissemos, traz uma exclusão, poderíamos dizer que esse 1 se acompanha de um zero, de um vazio, efeito da exclusão da coisa… essa coisa perdida, primeira letra, a, objeto.

Mas, é preciso que ao traço se acrescente um nome[1], que vai colocar o sujeito numa descendência e proporcionar, estabelecer seus limites sintomáticos, introduzindo-o na lógica da exceção enquanto 1 distinto de outro 1, e incluindo-o, ao mesmo tempo na série que vige sob o Nome. O nome incorpa o sujeito, dá-lhe corpo, fornece algo que não é significante, o amarra num ponto ao mesmo tempo em que o coloca numa série mediando ascendência e descendência, fornece-lhe pois lugar e tempo.

O Nome é o lugar da transmissão, acessa o Outro e sustenta a evicção da origem. O Nome nomeia um sujeito, dá-lhe condições básicas para tecer sua história na oscilação estrutural entre um (+1) e um (-1).

(Aqui, em muitas regiões do Brasil, o nome familiar, que marca a descendência, não é prestigiado. O que é chamado de nome é o prénom na língua francesa, e não à toa o nom do francês é para nós o sobrenome. A pergunta que ocorre: efeito do processo de mestiçagem?).

Voltando ao tema, ocorre uma questão, esse sujeito que surfa entre significantes precisa ser nomeado? E, então, temos que considerar a referência da duplicidade necessária entre enunciado e enunciação. O sujeito da enunciação não desliza fora de um enunciado. Entretanto há de se considerar que esse sujeito que surge inadvertidamente tem sua identidade na ex-sistência… que não tem nome. Paradoxo?

 Ser nomeado implica simultaneamente um nomeante, um nome um nomeado – é o batismo de 1 1 e de seu lugar numa série.

Toda essa premissa é suporte para a reflexão que vai focar essa pandemia que nos atropela, que afeta os nossos “rapports”, que nos isola em cantos sem melodia.

A observação recai não só sobre o absurdo número de mortes diárias, mas de como o efeito desse número totalizado rebate. No meu entender a falta de batimento do cada um, com seu nome, vai produzir um efeito de desentificação[2]. Perdemos, ao mesmo tempo, a referência da oscilação no traço entre presença/ausência entre +1 e -1, perdemos a única fraternidade possível que é a de estarmos sob o mesmo Nome. A desentificação nos faz perder a perda. E, aí, um paradoxo: não podendo perder o cada um, não podendo sofrer o luto do cada um, a Morte nos pega de banda, fornecendo quantidades de angústia, espalhando depressão.

O número total aborta o sujeito. Paradoxalmente a contagem não o conta, resta-lhe o limbo, lugar dos não salvos, lugar dos não batizados.

Me contaram que por ocasião do ato terrorista que atingiu o Bataclan, em Paris, o jornal Le Monde publicou uma edição com o nome dos mortos, e, a cada dia, passou a trazer o retrato e algumas referências de cada um deles. Muito difícil não ser afetado, atingido pela tríplice injunção aí produzida, de imaginário, simbólico e real – uma foto, o nome, a morte.

Aqui também tivemos (poucas) manifestações simbólicas sobre essa desgraça –cruzes na areia, e, no jornal foto de família inteira seguida da mesma foto desfalcada de alguns membros, por exemplo.

Claro que tais procedimentos não resolvem a contaminação viral, mas reconhecemos aí a cerimônia de uma liturgia que prestigia a fraternidade naquilo que dela é possível – comemora a singularidade de cada um sob o batismo de um Nome, comungamos o mesmo lugar Outro. Assim mantem-se o campo identificatório, assim podemos fazer parte do mesmo tecido com os outros nós, mediados pelo Outro.


 

* Texto escrito para a Intersecção, encontro de trabalho entre a AEPM e o Cartéis Lacanianos em torno das elaborações do Seminário IX de Lacan: A Identificação, realizado em Maio de 2021.

[1] Sobre o conceito de Nome fiquei com três, aliás, quatro alternativas, decorrentes da leitura de textos do Melman, do Morali e do Thibierge. Melman no capítulo “A fidelidade ao nome próprio: sexualidade e morte” no livro “Para introduzir à Psicanálise nos dias de hoje” diz: “Lacan observa que o nome próprio não se traduz, um nome próprio é o mesmo qualquer que seja a língua, as diversas línguas que poderão me interpelar, que poderão assinalar meu nome, em que eu poderei tentar me impor. Será sempre o mesmo nome”. E, mais adiante: “o nome próprio não é um significante”. Em outro texto “A identidade e seus destinos”, no mesmo livro, diz que o nome próprio é um significante que se significa a si mesmo (um autista decidido, por vocação). Morali discutindo o de que se trata quando se fala de significante puro, parece atribuí-lo ao nome próprio: “d’une certaine façon pourrait renvoyer au nom propre en tant qu’il nome quelque chose qui n’a aucun rapport avec quoi que ce soit d’autre: c´est sa fonction essentielle!” (essa citação foi retirada do texto em que ele discute o capítulo VII do Seminário da Identificação). Quanto ao Thibierge, no seu artigo “Remarques sur le nom propre, l’objet et l’identité”, encontramos o seguinte: “Le nom propre…il ne designe le sujet, ni même quelque chose substantiel, il est un signifiant qui permet que le sujet soit représenté dans le langage en étant lui-même elidé”… Portanto três abordagens, quatro na verdade: não significante, significante que significa a si mesmo, significante puro, significante (simples). E aí?

[2] Pensei, muito garbosa, que tinha inventado esse termo. Mas encontrei um texto de Octave Mannoni que tem esse título. Nele, se bem entendi, ele valoriza esse processo articulando-o à referência a um deslocamento na direção do objeto. Desentificar é, repito, se bem entendi, é quase “desneurotizar”, talvez melhor dizendo é estar mais disponível ao desejo. O que tento colocar sob esse termo vai noutra direção.