Olhei demoradamente para a palavra identificação, escrita de forma avulsa, solta, numa folha de papel, e várias alternativas de emprego me ocorreram à medida que ia juntando a outras palavras:
- eu me identifico – eu me apresento;
- eu o identifico – eu o reconheço;
- me identifico com fulano – tenho afinidade com fulano;
- me sinto identificada por meio de alguma coisa – me sinto representada por essa alguma coisa.
E assim fui me deparando com algumas possibilidades que surgiam neste exercício de situações encorpadas, explícita ou implicitamente, na primeira pessoa e que me trouxeram à lembrança uma antiga anotação de fundo de gaveta, cuidadosamente guardada para um momento oportuno.
Nela, consta que trabalhar com o tema da identificação é confrontar-se o tempo todo com o estatuto e a dimensão do eu. Anotação antiga que me atualiza numa citação precisa e tocante de Lacan, extraída do Seminário 20, Mais, Ainda: “Eu, não é um ser, é um suporte a quem fala. Quem fala tem a ver com a solidão, no que diz respeito à relação que só posso definir dizendo, como fiz, que ela não se pode escrever. Essa solidão, ela, de ruptura do saber, não somente ela se pode escrever por excelência, pois ela é o que, de uma ruptura do ser, deixa traço.”
Einziger Zug!!! O quanto disso está em jogo na identificação… As palavras de Lacan trazem o mal-estar do confronto com a experiência de miragem, de ilusão de ótica, de efeito especial e espacial que a constituição de falante consagra e faz padecer, por meio de uma permanente capacidade de regeneração a toda tentativa de desconvencimento de si, no plano da existência. Não deixando, também, de evocar e invocar esse indício primordial, cunhado, sulcado, no nível intermitente da ex-sistência. Esse Einziger Zug, esse traço unário que carimba o sujeito e promove sua iniciação no simbólico, enquanto ruptura.
Na Lição II, do Seminário IX, A identificação, Lacan nos diz que o Einziger Zug, como traço único, “poderia ser substituído por todos os elementos do que constitui a cadeia significante, suportá-la, essa cadeia por si só, e simplesmente por ser sempre o mesmo”. Na Lição I, ele já dissera que é no nível de uma experiência de fala com seus equívocos e ambiguidade que podemos nos interrogar sobre o que é possível de ser abordado “sob o termo de identificação”.
A propósito, onde escrevi “promove sua iniciação no simbólico”, o que pretendia escrever era “promove sua inscrição no simbólico”. Quando dei por conta, a palavra iniciação já tinha se aboletado lá. E se no princípio era o verbo, o sujeito só pode entrar rompendo.
Não bastasse, ando às voltas com o efeito de ter tomado Ofélia por Gertrudes, durante várias páginas do capítulo XVI, do Seminário VI, O desejo e sua interpretação. E justamente quando Lacan menciona “um traço singular” ao se referir a Viola, personagem de outra obra a que recorre para a apresentação de Ofélia, neste capítulo.
A princípio, tentei recobrir esse efeito, justificando-o como uma distração. Depois, achei muito instigante que o momento em que começo a “tomar uma pela outra”, tenha ficado marcado no instante em que a referência a um traço é ressaltada por Lacan.
Retorno à sustentação da cadeia significante pelo traço, considerando que se trate de uma sustentação que consiste na movimentação dessa cadeia pela diferença que, nela, poderá comparecer, a cada vez, a partir deste Um que se mantém, desde que uma perda vigorou como falta e o fez, não somente primeiro mas, sobretudo, único.
*Texto escrito para a Intersecção, encontro de trabalho entre a AEPM e o Cartéis Lacanianos em torno das elaborações do Seminário IX de Lacan: A Identificação, realizado em Maio de 2021.