Como, na cadeia significante, de um significante (S1), a metáfora do sujeito, a outro significante (S2), a coisa freudiana, e só em retroação, da coisa freudiana à metáfora do sujeito, vem uma significação?
Na AEPM, após trabalhar o texto A Metáfora do Sujeito (1961) iniciamos o trabalho com o texto A coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em psicanálise (1955) num momento de virada, inclusive no nome do dispositivo, para Trabalho de Estudo dos Fundamentos da Clínica Psicanalítica.
A proposta de Lacan com o retorno a Freud é de retomar os fundamentos da psicanálise frente ao que a psicanálise havia chegado naquela época e, mostrando que esse é o caminho para re-situar o lugar da psicanálise, tomar nas rédeas os fundamentos da psicanálise e da importância que ele deu nos estudos de seus seminários ao retorno aos textos do Freud que, segundo suas palavras, deram a ele e aos que o seguiam a surpresa de verdadeiras descobertas, não de chegar ao sentido do retorno a Freud, mas da psicanálise marcada por seu pai, um retorno ao sentido de Freud.
Lacan nos mostra que a descoberta de Freud, do inconsciente, “questiona a verdade, e não há ninguém que não seja pessoalmente afetado pela verdade”. Questiona assim: “essa verdade, que é ela?”.
Uma questão: a coisa freudiana é a nossa verdade? Estamos acostumados a nos referir à coisa como das Ding, mas em nenhum momento deste texto Lacan nomeia a coisa de das Ding.
A coisa fala de si mesma, mas como fala? A verdade se mostra, “ali onde a fala mais cautelosa exibe um ligeiro tropeço”, ali algo se mostra como verdade, algo que tem a ver com a coisa freudiana.
Como a verdade fala é uma mostração, naquilo que são as próprias formações do inconsciente, nos atos falhos, nos sonhos, nos chistes, nos sintomas e nas lembranças encobridoras, no que é dito no discurso do ser falante, mostrados como tropeços, equívocos, enigmas, que escapam sem que o sujeito o saiba, produzem-se numa dimensão que não é a do eu nem a da consciência, mostram o fracasso de um querer dizer e apontam para outra coisa, um sentido novo.
A verdade disse de si mesma: “Eu falo”, mas é ao eu que devemos nos lançar tão rapidamente? Lacan nos adverte: “Para reconhecermos esse [eu] no que ele fala, talvez não seja ao [eu] que devamos lançar-nos, mas antes deter-nos nas arestas do falar. Não há fala senão de linguagem”.
Eu, a verdade eu falo! Eu falo metaforicamente no que desliza metonimicamente, como um esgoto que transborda e vai saindo, escoando, também como um vulcão, um fogo interno que transborda e escorre pelas bordas. Verdade nunca encontrada, mas sempre buscada na repetição, o que eu sou no desejo do Outro?
E o psicanalista? Lacan nos diz que é aquele que pratica uma psicanálise, aquele que no lugar Outro deve tomar o discurso do sujeito ao pé da letra, lembrando que a verdade fala e pode aparecer no tropeço, na rachadura do discurso, um fio que pode ser puxado, por onde isso fala. Se o significante pode ser lido, isso fala, mas não tem um saber, a verdade é semi-dita, algo na ordem do enigma, do tropeço e que passa pela fala, no encadeamento de um significante com outro significante. O significante faz corte e nesse corte pode se dar a passagem do sujeito.
Com quem mesmo se fala numa análise? Não é pela via do “euzinho” no eixo imaginário (a – a’, eu – eu, eu – outro), mas pela via do Outro, que convoca o sujeito, sujeito que é mudo, mas que sua verdade fala por meio do enigma, um semi-dizer, a decifrar. O inconsciente, lugar inacessível, com leis próprias, dá a ouvir o desejo, que é o que desperta e orienta a nossa vida.
*Texto escrito a propósito da jornada do dispositivo Trabalho de Estudo dos Fundamentos da Clínica Psicanalítica, realizada na AEPM em junho de 2021.