O que é uma psicanálise? É o tratamento que se espera de um psicanalista. Essa tautologia nos deixa meio à deriva. E se tentarmos avançar fazendo a pergunta desta maneira: o que o psicanalista espera de uma psicanálise, o que é que ele visa? O bem, a felicidade do sujeito? Sabemos que não pode ser assim. Há uma ética em jogo, mas esta não deve ser a do bem, aquela da perspectiva aristotélica, já que a mesma não corresponde àquilo que anima uma psicanálise, tal como Lacan a concebe. E o que é que anima uma psicanálise? Uma psicanálise não pode se dar fora de uma visada ética e, para Lacan, a ética da psicanálise é a ética do desejo. Falar assim parece fácil, mas o que isso quer dizer? Lacan dedicou o seu ensino e praticamente uma vida inteira tentando dar conta dessa questão.
No Seminário VII, Lacan nos confronta com a questão de saber o que a psicanálise permite formular em relação à origem da moral. De onde viria a famosa “consciência moral”, essa instância que permite a convivência entre os homens e a instauração das leis que permitem tal convivência?
Em Totem e Tabu, Freud nos apresenta, segundo Lacan, um mito, o do pai primevo, que dará origem à civilização, aquele de quem podemos dizer Tu es celui que tu es (Tu és aquele que és), com suas muitas reverberações possíveis, inclusive, e por que não, esta: Tu es celui qu’es tué (Tu és aquele que é morto), sem esquecer que Lacan chama a nossa atenção para o fato de que o verbo tuer, que vem do latim tutare, quer dizer conservar, de onde vem também a palavra tuteur (tutor, em português ) aquele que vela por, que cobre com sua proteção, que defende… Pois bem, por que foi necessário que os filhos tenham avançado a morte do pai, e, na sequência, tenham se interditado a si próprios as mesmas mulheres que queriam lhe arrebatar? Para mostrar que ele é “imatável”. Qual a importância disso para a questão ética? A consciência moral é oriunda dessa noção mítica, segundo Lacan, dessa “categorização de uma forma do impossível”: a eternização de um único pai na origem, um pai que foi morto para ser conservado.
De alguma maneira, o assassinato original do pai vai produzir um recalque do desejo e a lei não será mais simplesmente esse algo no qual toda a comunidade dos homens está implicada, ela assume uma perspectiva real, sob a forma de um núcleo permanente de consciência moral, trata-se de algo que pode tomar as formas mais diversas, mais estranhas, que chamamos supereu. “Ele é ao mesmo tempo a lei e sua destruição, sua negação, ele é essencialmente a própria fala, o comando da lei, na medida em que dessa lei já não resta mais do que sua raiz, a lei se reduz inteirinha a alguma coisa que não se pode nem mesmo expressar, ela se apresentará como um ‘tu tens que’, que é simplesmente uma fala privada de todos os sentidos. O supereu é, portanto, um imperativo sem sentido”.
Lacan nos diz que a experiência moral que está em questão na análise se resumiria no imperativo Wo Es war, Soll Ich werden, onde isso era, eu deve advir. Então temos esse eu que deve advir lá onde isso era. O que tudo isso tem a ver com a ética?
Uma coisa que é enigmática e fascinante em uma análise é a presença de paradoxos que, ao mesmo tempo em que parecem entravar o andamento da análise, possibilitam o seu avanço. Poderíamos dizer que eles são condição da análise e que dar-lhes lugar e mantê-los é permitir o exercício da psicanálise. Travar-avançar, eis em si um paradoxo. Como suportar que não há a resposta certa, mas respostas possíveis e até, muitas vezes, momentâneas?
Podemos perceber toda a dificuldade que está em jogo na questão ética do desejo. Para ambos, paciente e analista, a dificuldade se apresenta. Para o primeiro, como advir lá onde isso era e onde deverá confrontar-se com os imperativos muitas vezes estranhos, paradoxais e até cruéis do supereu? Para o analista, como não ceder aos inevitáveis ideais que não deixarão de comparecer à medida que a análise for caminhando?
* Texto escrito a partir do trabalho com o Seminário VII, A ética da Psicanálise, de Jacques Lacan, realizado na AEPM em 2020.