Observações a respeito de limites e abismos – A Ética da Psicanálise

Maria Victoria Borges Díaz

O trabalho de 2008 a que me referi no texto anterior[1] pensava uma analogia entre o projeto transcendental kantiano e o propósito lacaniano do que considerei como uma busca dos limites, no caso, da experiência analítica. No Seminário X, Lacan, ironicamente, nos manda escolher entre o conceito de absoluto de Hegel e a angústia quando se trata da captura do real. E eu me perguntava: de que escolha se trata? De um abismo incontornável entre o simbólico e o real? Como pensar aí a prática analítica?

A questão que, desde o começo, se impôs a mim no texto anterior: “Por que Lacan precisou passar pela sublimação e pelo belo-sublime para chegar à ética da psicanálise?” trazia, no fundo, a mesma interrogação. Na certeza de não ter respondido, deixo como algo que considero importante a ser pensado, talvez passando por Heidegger e Nietzsche com os quais Lacan está silenciosamente discutindo como se percebe em alguns vestígios (“ser-para-a-morte”, por exemplo). Se o primeiro trabalha com a estrutura do Dasein, Nietsche o faz em relação às consequências de decadência por meio da resposta dada pelo pensamento (filosofia) ao mascarar os terrores e atrocidades da existência e da morte através da criação do belo, da medida, da arte apolínea e dos deuses, do mundo da “bela aparência”.

O Seminário VII[2] coloca, de maneira aguda, essa questão, principalmente por estar perpassado por uma das crises mais violentas entre as superpotências durante o que se chamou de “Guerra Fria”: “No momento em que lhes falo do paradoxo do desejo, no que os bens o mascaram, vocês podem ouvir lá fora os terríveis discursos do poder. ” (p. 275). Como a psicanálise pode ouvir “o que ressoou”? A formulação deve ser: “O que isso quer?” “Aonde isso quer chegar?”. Contudo, por mais que o trágico esteja colocado à luz do dia, um isso não é possível, acalma e faz adormecer. Em contraposição, Lacan afirma: “É possível porque o possível é o que pode responder à demanda do homem, e que o homem não sabe o que ele põe em movimento com sua demanda.” (p. 276).

“Transpusemos a linha?” (p. 275). Essa questão me parece colocada não apenas a esse mundo do bem, da política do bem, mas também à ciência e à psicanálise. Para além da linha há o inconsciente, isto é, a memória do que ele esquece. E o que ele esquece é o fedor, a corrupção sempre aberta como um abismo. A vida é podridão. Que vida é essa, vivida na fronteira por não querer nada saber sobre o que existe para além, por não enfrentar esse desconhecido, o estranho, aquilo que resiste?

A outra via, qual é? O discurso da ciência que, pela primeira vez, desvelou a potência do significante, o discurso que surge nas pequenas letras das matemáticas. Lacan considera que a psicanálise é atingida na medida em que no discurso da comunidade, do bem em geral, os efeitos desse discurso se fazem sentir: “Essa questão é propriamente a nossa. Para nós se coloca a questão que está subjacente à ordem de pensamento que tento desenrolar aqui diante de vocês.” Mas, no discurso da ciência há uma alienação suplementar; trata-se de um discurso que, “por estrutura, nada esquece”. Confronta-se, assim, ao discurso memorial do inconsciente que prossegue em nós sem que o saibamos, cujo centro está ausente e situado pelo “ele não sabia”.

O uso desse discurso assim constituído baseado no princípio da potência do significante, fazendo-o circular “no real e no mundo” tem seus efeitos: “Basta que uma pequena cadeia significante comece a funcionar baseada nesse princípio para que as coisas continuem exatamente como se funcionassem sozinhas, a tal ponto que ficamo-nos perguntando se o discurso da física, engendrado pela onipotência do significante, vai confinar com a integração da Natureza ou com sua desintegração” (p.291)

Mas a via da psicanálise não é também sem efeitos: temos aqui a dependência do homem ao significante no que tange à sua relação com o desejo. “É porque o movimento do desejo está transpondo a linha de uma espécie de desvelamento que o advento da noção freudiana de pulsão de morte tem seu sentido para nós.” E acrescenta: “A questão se coloca no nível da relação do ser humano com o significante como tal, dado que no nível do significante todo o ciclo do ente (étant) pode ser recolocado em questão, inclusive a vida em seu movimento de perda e de retorno” (p.291).

Creio que é disso que a tragédia Antígona lida por Lacan trata: o que pode ser um desejo que nenhum bem motive, como o de Antígona?  O que isso tem a ver com o que o ser humano quer e de que se defende? Além do bem, o belo. E além do belo? A Coisa? A Lei? “[…] A relação dialética do desejo com a Lei faz nosso desejo não arder senão numa relação com a Lei, pela qual se torna desejo de morte.” (p. 104). Preservar o lugar vazio para a emergência do desejo nos livra da destruição da vida como tal?


 

*Texto escrito a partir do trabalho com o Seminário VII, A ética da Psicanálise, de Jacques Lacan, realizado na AEPM em 2020.

[1] Referência ao texto, também de autoria de Maria Victoria Borges Díaz, Por que Lacan precisou passar pela sublimação e pelo belo-sublime para chegar à ética da psicanálise? Disponível em: https://aepm.com.br/index.php/2021/12/13/por-que-lacan-precisou-passar-pela-sublimacao-e-pelo-belo-sublime-para-chegar-a-etica-da-psicanalise/

[2] LACAN, Jacques. Seminário VII : A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2008.