Tem algo que parece ficar claro de saída: o gozo seria um mal, fugimos dele, seja em nome do prazer, seja pelo bem, pelo narcisismo, em nome do outro e em última instância de mim, ele despedaça o corpo do outro, impede que eu o ame. Quiçá fosse tão simples. O gozo do parlêtre é um paradoxo, sua relação com a lei e com o desejo é um caminho enigmático. E, de saída, o amor entra nessa complicação, já que é o que surge em retorno ao assassinato do pai primevo, a partir do que se instaura a Lei e o gozo do parlêtre. Com a morte do pai, o gozo, longe de liberado, fica interditado. A respeito dessa falha interditiva, Lacan coloca que “tudo que a transpõe (a falha interditiva) constitui objeto de uma dívida no Grande livro da dívida. Todo exercício de gozo comporta algo que se inscreve no livro da dívida na Lei. E muito mais ainda, é preciso que algo nessa regulação seja, ou bem um paradoxo, ou bem lugar de algum desregramento”.
No desregramento a coisa não vai bem, seja na direção de submeter-se a uma lei moral, seja avançando na via do gozo sem freios. Então, o que seria uma regulação que fosse um paradoxo? E, ao que parece, esse exercício de gozo possível, tem a ver não com uma dívida que se pagaria para finalmente poder gozar, ainda que pouco, mas uma dívida a ser inscrita, inscrita no Grande livro da dívida, na Lei. Não é incluir o gozo como um dos itens de que trata a lei dos homens, já que se trata de inscrever algo que só é possível pela transgressão.
Daí, no seminário, Lacan não tarda a colocar o mandamento “amar ao próximo como a si mesmo”. Este mandamento não é altruísmo. O bem é altruísta, e o altruísmo é egoísmo, mas, nos diz ele, enquanto se trata do bem não tem problema, a questão é quando se coloca o amor. Então, o problema é que tenho que amar o outro, o próximo? Basta, então, ficar na via do bem? Nem tanto. No altruísmo imagino o penar do outro no espelho do meu, inclusive me sacrifico pelo seu bem, desde que ele dependa de meu esforço. Aí, nos diz Lacan, tem imaginação, só tem imaginação, é o espaço do semelhante a nós mesmos, idêntico e irredutível, uma preliminar de individuação, portanto, um “este que não é aquele”. Contudo, nesse espaço eu extravio o outro, falta essa via difícil: o amor ao próximo! Os pacientes não falam disso o tempo todo? Não é disso que falamos em nossa análise? Quanto mais próximo, tanto mais difícil essa via. Quando só tem imaginação, ou seja, o bem do outro, falta esse mais próximo e falta essa via difícil até ele, até esse âmago de mim mesmo e para além de mim. É a mesma maldade, esse centro incandescente e irrespirável. E essa via difícil, eu não diria, por enquanto, de amor ao próximo, mas a via do mandamento de amar o próximo, essa via é a via do gozo. E se uma transgressão é necessária para ter acesso ao gozo, nos diz Lacan, trata-se da Lei como fundada no Outro.
Por um lado, Lacan nos diz que o mito de Freud é uma resposta a esse fato: a morte de Deus. Em seguida, põe que o que ele propõe como S(Ⱥ) é uma resposta derradeira a uma garantia pedida ao Outro. Garantia de quê? Garantia no sentido dessa lei articulada o mais profundamente no Inconsciente. Lei da interdição do incesto? Lei da linguagem? Certamente, Lei como fundada no Outro. Ocorre que, se nada mais há senão a falta (manque), o Outro se esvai, e o significante é o significante da morte. E, continua Lacan, é em função dessa posição, ela mesma suspensa ao paradoxo da Lei, que se propõe o paradoxo do gozo que tentamos articular.
Essa é uma das partes que não acompanhei. Por que esse Outro se esvai? Esta posição está suspensa ao paradoxo da Lei? Quando Lacan propõe que as imagens são enganadoras, nos fala do vazio de Deus a ser descoberto e diz que é aí também que Deus deixa o homem no vazio, que faz parte do poderio de Deus avançar nesse vazio, acrescentando e aumentando minhas interrogações. Em outra parte, ainda, nos diz que a Lei provém de alhures, onde aquele que deve responder, garantir, está faltando, o próprio Deus. Todas essas partes falam da mesma coisa?
Mas Deus não está morto desde sempre? Inclusive por isso o monoteísmo, as leis escritas, o cristianismo. Mas, principalmente, o que estrutura o parlêtre não advém do fato de que o verdadeiro pai é o pai-morto, pois aí ele é um lugar, uma função, um nome? Então se trata do fato de ter sido um assassinato? Essa ruindade, essa mauvaiseté, essa maldade que é a própria possibilidade do parlêtre. Uma ruindade como solidária do que ocorreu concernindo à Lei. Lacan fala de Aufhebung, retomando e abolindo, conservação do que é destruído. Daí o cristianismo, o mandamento do amor ao próximo como a si mesmo. Lacan diz que a Lei é substituída, nesse sentido do Aufhebung, substituída pelo único mandamento doravante, amar ao próximo como a si mesmo.
Um último ponto. Quando nos traz Sade, diz que avançar nesse vazio central é, até agora, a forma que se apresenta a nós o acesso ao gozo. O problema é que o corpo do próximo se despedaça. Entendia esse despedaçamento como um gozo que leva à agressão, violência, tortura. Mas creio que tem a ver com o que está na passagem de Sade que Lacan lê (p. 246) e que é quase, diria, romântica no modo como está escrita, e que mostra que esse objeto nada mais pede senão para entrar no objeto valorizado, objeto de nosso amor. Então, despedaçamento, pois o que fica evidente é que esse objeto está necessariamente em estado de independência no campo que dizemos central. Importante, já que Lacan coloca, conforme acompanhei, que é aí que se situa o campo de batalha da experiência psicanalítica, onde se organiza a inacessibilidade do objeto enquanto objeto de gozo, na barreira para além da qual está a Coisa analítica.
*Texto escrito a partir do trabalho com o Seminário VII, A ética da Psicanálise, de Jacques Lacan, realizado na AEPM em 2020.