O lugar da fala n’A coisa freudiana

Márcio Clayton Costa

Na leitura de “A coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em psicanálise” o que me pareceu muito difícil foi encontrar o que fazia o conjunto do texto. Em certos momentos, pareceu-me uma reunião de vários escritos sobre temas diversos. Depois, no fim, há a retomada de uma questão que havia sido colocada no começo, e me ocorreu que, de uma maneira ou de outra, algo atravessou essa profusão de temas: a verdade.

Não deve ser por acaso, então, o efeito de enigma que quase tudo no texto suscitou em minha leitura. Não bastasse a Coisa não se prestar ao furor das definições, ela ainda tem aqui esse atributo: freudiana. Isso em um texto no qual não me lembro de qualquer referência explícita ao Projeto, onde está a Coisa de que Freud falou.

Parece que o que se encontra em jogo é antes o efeito de verdade da mensagem de Freud, aquela pela qual, naqueles para quem é transmitida, é possível encontrar “o testemunho de uma transformação, às vezes sobrevindos da noite para o dia, de sua prática, simplificada e tornada mais eficaz, antes mesmo de se lhes tornar mais transparente” (p.405). Um efeito de verdade, portanto. Não de um saber que anteciparia a ação apropriada.

Nesse rumo, alguns trechos foram capturando minha atenção. Alguns com precisões teóricas, outros com observações sobre a prática clínica e frases que mais pareciam aforismos, depois das quais era difícil seguir a leitura e as discussões, como se alguma coisa ainda precisasse ser lida, dita ou escutada a respeito daquilo.

Um dos trechos de precisão teórica que me pareceu mais profícuo é o que Lacan introduz de uma distinção entre resistência e defesa, termos cujo emprego se confunde cada vez mais, diz ele.  Ele diz: “A primeira resistência com que a análise tem de lidar é a do próprio discurso, na medida em que antes de mais nada ele é um discurso da opinião, e em que qualquer objetivação psicológica se revelará solidária a esse discurso” (p.420). Essa própria objetivação psicológica, da qual Lacan acusa os analistas, parece exemplificar o que pode ser da ordem de uma defesa.  A defesa, mecanismo a serviço do eu, é solidária do que é da ordem da resistência, que, primeiramente, ao menos na análise, é resistência do discurso. Talvez dito de outra forma, a defesa é uma resistência, mas a resistência não se limita a defesa.

A partir de então irá insistir no texto este termo: objetivação. “Vocês não podem ao mesmo tempo proceder pessoalmente a essa objetivação do sujeito e falar com ele como convém” (p.420).  Essa investida de Lacan contra a objetivação suscitou em mim a interrogação sobre o que seria, em psicanálise, objetivar algo. Afinal, na psicanálise, dizemos algo que se encontra nesse texto: o eu é um objeto. Por que então não o tratar como tal? E, no fim das contas, pelo encaminhamento do texto, parece que o que ele está chamando de objetivação do sujeito, nada mais seria do que falar com o sujeito como se ele fosse um eu, sem distinguir, no que ele fala, um além dele. Mas lateralmente me interessou também pensar que se o sujeito na psicanálise não coincide com o sujeito do conhecimento, o objeto na psicanálise também não é o mesmo que pode ser conhecido, compartimentado, manipulado e reduzido a sua dimensão de objeto para o sujeito, isto é, para esse sujeito que se confunde com o eu. O que, ao mesmo tempo em que me pareceu quase óbvio, não deixou de me surpreender. Tudo é sempre outra coisa.

E por falar em outra coisa, há outra passagem do texto que me pareceu central: “O analista intervém concretamente na dialética da análise se fazendo de morto, cadaverizando sua posição, como dizem os chineses, seja por seu silêncio, ali onde ele é o Outro, Autre com A maiúsculo, seja anulando sua própria resistência, ali onde é o outro, autre com a minúsculo. Em ambos os casos e sob as respectivas incidências do simbólico e do imaginário, ele presentifica a morte” (p.431).

Esse parágrafo pareceu-me central em dois níveis. O primeiro pelo caráter enigmático que esse fazer-se de morto, essa cadaverização suscitou para mim. O que diabos seria isso? O destino providenciou, e aqui talvez destino seja também outro nome para resistência, que eu não conseguisse comparecer ao dispositivo no dia em que foi trabalhada essa passagem. Em outro nível também me pareceu central pelo que ele tem de esclarecedor. Em uma análise concreta, a alteridade do analista situa-se nesses dois planos, e o que há de essencial é distinguir a maneira como intervém em cada um deles, “para saber como intervém, em que instante se oferece a oportunidade para isso, e como agir” (p. 431).

Em seguida, esses dois planos aparecem do outro lado, destacando-se que a condição primordial é que ele – leio nesse “ele” o “analista” – “esteja imbuído da diferença radical entre o Outro a quem sua fala deve endereçar-se e esse segundo outro, que é o que ele vê e do qual e através do qual o primeiro lhe fala no discurso que profere diante dele. Pois é desse modo que ele poderá ser aquele a quem esse discurso se dirige” (p.431).

As dimensões do grande Outro e do pequeno outro discernidas do lado do analista e do analisante. Isso me pareceu diferente do que já havia lido a respeito, assim como a fórmula que virá em seguida, na qual ele diz que o grande Outro é o lugar “onde se constitui o [eu] que fala com aquele que ouve, o que um diz já sendo a resposta, e o outro decidindo, ao ouvi-lo, se esse um falou ou não” (p.432).

Lacan aqui dá esse passo a mais. O grande Outro como lugar onde se constitui aquele que fala, mas não só, aquele que fala com aquele que ouve. É de dentro da situação analítica, da transferência, que se pode dizer o que quer que seja de uma análise, do analisante e da ação do analista. Na diferença entre o pequeno outro e o grande Outro.

Isso me permite escutar que o significante só é significante no sentido analítico do termo quando há alguém para escutá-lo como representando um sujeito. E representando-o para outro significante. Que por sua vez, se é também significante, também representa o sujeito. Não sei se poderia dizer representa outro sujeito. Mas de toda forma, sujeito. Os significantes não estão ali, prontos na fala de qualquer um o tempo todo, eles se constituem enquanto tais na condição de que haja um sujeito que fale, por meio de um eu que se endereça a um outro, que ali vem sustentar, em dados momentos, a dimensão do Outro a quem essa fala pode se dirigir.


 

*Texto escrito para a Jornada do dispositivo Fundamentos da clínica Psicanalítica, realizada em Junho de 2021.