Quais são os votos dirigidos às crianças nos dias de hoje?

Alyssandra Costa

Trabalhando o texto A propósito do incesto, que é um anexo do livro Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje, no qual várias questões atuais são colocadas por Charles Melman, mais uma vez me parece que ele nos interroga sobre o papel e a responsabilidade dos psicanalistas de crianças e adolescentes, especialmente quando estes estão diante de problemas familiares que antes eram casos individuais, tratados pelos meios especializados, e, agora, são problemas da sociedade, divulgados nos meios de comunicação, como os problemas relativos ao incesto, por exemplo.

Melman interroga os terapeutas, os educadores, os professores, os assistentes sociais, os psicólogos quanto a “punir ou saber o que deve ser imaginado, para ser decidido pelo que for melhor para os interesses da criança” (p.381).

Ele nos diz que precisamos ter a dimensão humana do que fazemos diante de tais situações, que deveriam ser tratadas de maneira muito particular, privada, e que muitas vezes são tornadas públicas, possibilitando que muitas pessoas gozem com o que é publicado nos jornais e nas redes sociais; e nos chama a atenção para pensarmos em quais são as consequências psíquicas dessas situações para as crianças e adolescentes.

Melman diz: “Eu ressaltava que nossa preocupação primordial deveria ser o futuro da criança, pois, afinal temos um papel que deve ser terapêutico, antes de ser o do justiceiro” (p.373).

A questão acerca do incesto nos remete para outra muito importante que é a da interdição do incesto: “uma lei geral, própria à humanidade, um interdito que era comum a todos os humanos” (p. 374).

Melman nos lembra de que não há vida humana que não seja organizada por um interdito, ou melhor, por um objeto interditado, e esse interdito é congruente com o que é o desejo. Havia um compartilhamento do interdito e hoje, segundo ele, há um compartilhamento do excesso.

Dessa forma, nas situações muito particulares, tal como uma das situações citadas por ele no texto, em que um pai pode perder a cabeça ou enlouquecer, como os psicanalistas podem se colocar diante disso?

Charles Melman também nos adverte que nenhuma situação em que o incesto se deu terá a mesma consequência para a criança ou adolescente, e chama a nossa atenção acerca do que pode acontecer com elas diante de tais problemas e da responsabilidade que temos com o futuro das mesmas, com o seu futuro de adultos e sua participação na vida sexual.

Então, quando estávamos terminando a leitura do texto, me ocorreu uma lembrança da minha infância na qual minha avó me abençoava assim: “Deus te proteja! Deus te abençoe! Deus te dê vergonha!”.

Eu fiquei pensando que não foi à toa que eu me lembrei dessa palavra, vergonha, num momento em que trabalhávamos um texto que interroga o futuro das crianças frente ao que hoje é chamado por Melman de permissividade social e fala do quanto o despudor está em toda parte.

Essa permissividade, segundo Melman, invadiu o meio familiar quando este era o meio no qual a criança era introduzida à lei, à regra. E hoje, os seus pais também participam dessa permissividade.

 Melman nos diz que as perversões são permitidas, legalizadas e defendidas pela lei nos dias de hoje (p.380).

Voltando para essa palavra que me ocorreu, vergonha, isso me fez pensar o que é a vergonha e para o que ela serve. A vergonha é um dos diques psíquicos citados por Freud nos “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, além da moral e do asco (Freud, p.168). Eu não me refiro aqui à vergonha como algo que paralisa o sujeito ou à falta de vergonha que possa transformar um sujeito em um sem vergonha.

No texto, Melman nos diz que o problema é que queremos saber, assim como Édipo, e o quanto é difícil suportarmos ficar um pouco no equívoco, ou suportarmos jogar um véu em algumas situações, por exemplo.

Quando Melman nos lembra “que o excesso de luz é uma forma de obscurecer, paradoxalmente, não se vê mais nada”, será que quando ele nos diz isso, ele também não está tentando nos dizer que suportar não descobrir tudo, não saber de tudo, não entender tudo e não ver tudo pode, no caso das crianças, protegê-las psiquicamente?


 

*Texto escrito para a jornada do dispositivo Questões da Clínica com crianças e adolescentes realizada em junho de 2021