Incidências do trabalho com o seminário de Lacan sobre as estruturas freudianas das psicoses

Cristiano Henrique Pereira Silva

Ao longo desse tempo dedicado ao seminário de Jacques Lacan sobre as estruturas freudianas das psicoses, vários pontos me vieram, concernentes tanto ao campo da psiquiatria quanto ao da psicanálise, sobretudo no que tange às questões da clínica.

 Como um sujeito se torna psicótico? Por quais caminhos de perda, de falência, de diferença isso se dá? O que deixa de entrar para que um sujeito adentre em uma das mais diversas formas clínicas das psicoses? Por que é que, atualmente, a psiquiatria quase não fala mais em psicose? Ocupar-se da questão das psicoses é, a meu ver, o ponto de partida que marca o primeiro passo do seminário.

 Mas por que Lacan quis se ocupar dessa questão? Primeiramente, é importante dizer que Lacan parte do trabalho de Freud a respeito do livro “Memórias de um doente dos nervos”, no qual Schreber, um paranoico, percorre as tramas de seu delírio, escrevendo-o. É, para Lacan, um livro único, decifrado por Freud “como se decifram hieróglifos”. A partir daí o seminário abre um lugar para novas construções a respeito das psicoses.

Lugar… palavra que me veio por diversas vezes durante esse trabalho. O que é que nos pede um paciente psicótico quando ele vai até nossas salas de atendimento? E numa instituição psiquiátrica, quais os efeitos desse espaço físico enquanto um lugar delimitador, um ponto de sustentação que freia o surto, servindo de amparo?

No seminário sobre as psicoses, Lacan faz referência a psiquiatras clássicos, como Clérambault. Eu nunca havia ouvido falar no nome do Clérambault, tampouco em automatismo mental, fenômenos elementares… Nem mesmo tinha o entendimento da paranoia como uma das formas clínicas da psicose. Para o DSM, o termo usado é somente esquizofrenia e seus diversos subtipos. De início, encontrando-me com isso, fui tendo a curiosidade de pesquisar acerca de como isso foi se estabelecendo ao longo das classificações de diagnóstico psiquiátricas, até chegarmos ao atual DSM-V, no qual o termo psicose desapareceu, assim como a histeria, ou a neurose obsessiva.

A fragmentação em incontáveis transtornos, especificadores, caracterizadores, e os modelos espectrais, onde tudo ganha uma nuance patológica, tomaram conta da forma como se diagnostica em psiquiatria. Um campo inteiro foi deixado de lado. A psicose maníaco-depressiva se transformou em transtorno afetivo bipolar. Fiz essa pesquisa e escrevi, ao longo deste ano, um pequeno texto em que apresento o que fui observando. Foi impactante me dar conta de que a palavra psicose desapareceu das vozes dos psiquiatras. Das vozes e dos livros. Em minha formação psiquiátrica, em nenhum momento tive notícia da existência do livro de Daniel Schreber, por exemplo. E que livro rico!

O título do Seminário III na verdade é “As estruturas freudianas das psicoses” e creio que esse título realmente condiz com o fato de que realmente parte de uma referência a um trabalho genial do Freud.

Lacan nos diz: “Certamente, não se torna louco quem quer”. Como que a psicose se dá, então, para um sujeito? Como é que ela se estabelece? Por quais vias? Tem a ver com o real, o simbólico e o imaginário? Como o psicótico habita a ordem simbólica? Lacan nos traz aí a incidência da metáfora paterna e sua operação, e dos efeitos da foraclusão do Nome-do-pai, apresentando-nos o delírio como algo que pode ser lido como um fenômeno verbal e também como um fenômeno elementar. Ao falar do caráter central da alucinação verbal na paranoia, Lacan diz essa bela frase que, por vários momentos, ficou ecoando em meus ouvidos: “o sujeito articula o que ele diz ouvir”. E nos alerta: a questão do “quem fala? deve dominar toda a questão da paranoia”. E chega a um ponto que, para mim, foi um ponto marcante nesse trabalho: “o que foi rejeitado do simbólico reaparece no real”.

Nesse ponto, Lacan nos coloca de encontro com o que se dá para o sujeito psicótico, com a sua diferença. Há no sujeito psicótico algo que difere do retorno do recalcado que observamos na neurose. O que não é simbolizado retorna no real. Veio-me logo uma lembrança da época em que eu dava plantões na emergência do Hospital Nina Rodrigues e escutava os pacientes em surto maníaco, gritando bem alto a invasão que se dava em seus corpos, corpos sem limites, ampliados, ocupando uma geografia também ampliada. Eles se batiam nas paredes, numa logorreia que fala de uma vastidão, de um ser grandioso e dotado de uma imensa e incessante energia. Também me veio à memória relatos de pacientes que falavam de um corpo acometido por um apodrecimento. “Sou um cadáver ambulante. Estou todo morto por dentro”, disse-me um. “Todas as minhas células internas estão mortas”, disse-me o último paciente que atendi e que falava assim, com seu delírio, um delírio de Cotard.

 Para Lacan, o psicótico fala, portanto, uma língua que ele ignora, e a alucinação vem nos mostrar esse sujeito identificado com o seu eu, esse eu com o qual ele fala. Quando essa alucinação aparece no real, ela vem dotada de uma certeza, uma certeza inabalável. Nesse momento, esse sujeito psicótico fala com o seu eu, literalmente.

 Eis o que Lacan nos aponta como sendo o fenômeno delirante, isso que se impõe e que invade. Como não há mediação simbólica, isso se traduz numa via imaginária, único recurso que resta. Lacan, então, nos traz esse delírio como algo que pode ser lido, mas que não tem saída.

Então, qual seria o tratamento possível? Com essa pergunta, busquei as palavras escritas por Lacan no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Perguntei-me, de início, qual era essa tal “questão preliminar”? Vi que foi um texto escrito pouco tempo depois do Lacan dar o seu seminário das estruturas freudianas das psicoses. Qual seria, afinal, a relação entre essa questão preliminar e a possibilidade de um tratamento da psicose através da psicanálise? Que tratamento é esse e o que é que ele visa? Quais as bases que norteiam a direção desse tratamento? São questões que permanecem em aberto. Mas algo faz com que elas estejam em movimento. É uma boa inquietude.

Lacan aponta o delírio como um fato de linguagem, sendo o psicótico aquele que nos dá um testemunho aberto do inconsciente. Na neurose, algo fica aí velado. E na psicose? Lacan diz que, na psicose, há um impasse inaugural, uma perplexidade, um Outro excluído, afirmado no nível do outro. “Aí que se passam os fenômenos de entre-eu que constituem o que é aparente na sintomatologia da psicose”. Logo, me pergunto: seria essa sintomatologia um modo com o qual o sujeito reage a esse impasse, ou seja, um modo de tentar uma restituição? O delírio é, portanto, uma tentativa de cura? “O psicótico está unido ao seu delírio como algo que é ele próprio”, diz Lacan. Assim, uma prática psiquiátrica que visa exterminar o delírio, faz o que com o sujeito delirante? É uma prática cada vez mais excessiva em quantidade de remédios. O que esses remédios remediam quando se apoia uma prática de emudecimento da fala delirante? Que silêncio não deve desaparecer e que não está restrito às páginas do DSM-V? Não haver quase nenhuma palavra “psicose” em meio a tantas páginas desse manual de inúmeras patologias é algo que tem uma razão de estar assim.

Pergunto-me ainda o porquê do interesse de Lacan pelas paranoias, em especial. Por que ele parte dela? A paranoia para Lacan é a mesma definição clássica de paranoia que Kraepelin traz? Que diferenças a paranoia apresenta em relação a outras psicoses? Quais as outras psicoses que a psicanálise considera como parte desse campo? Sinto-me curioso para estudar os meandros que distinguem, para a clínica psicanalítica, essas formas de um sujeito estar na psicose. Lembrei-me de um texto que li do psiquiatra e psicanalista Marcel Czermak, em que ele escreve: “os psicóticos manifestam para nós a céu aberto o que os neuróticos manifestam de modo velado. Em outros termos, se quisermos saber o que se trata para um neurótico, basta escutar um psicótico”. Essa frase fez com que eu me encontrasse com o fato de que o estudo das psicoses pode nos abrir para diversas elaborações e do quanto isso tem repercussão no dia-a-dia de nossa clínica. Há, para o psicótico, uma luta, a luta que ele trava utilizando-se do seu delírio.

 O campo das psicoses seria, portanto, esse campo onde o delírio se dá como um modo de reconstrução? O delírio enquanto luta, enquanto algo possível de ser escutado. E lido. É, o campo das psicoses é realmente um material de estudo muito desafiador. Sua diferença traz uma outra incidência. As psicoses testemunham a outra cena de um modo único. Assim, descoberto.


 

* Texto escrito para a Jornada da Oficina da Clínica das Psicoses, realizada em setembro de 2021.