O insignificante “cavalo”  

Periandro Ramos Barreto

Lacan nos diz, em um determinado momento do trabalho, incansável, com o tema da fobia no Seminário IV, que a primeira roupagem que toma a fobia é o temor de ser devorado pela mãe, e que qualquer cavalo que for objeto de uma fobia é de um cavalo que morde que se trata, introduzindo assim o tema da devoração; e acrescenta que o tema da devoração, com tudo o que ele comporta de real, está, sempre, por qualquer viés que o abordemos, presente e identificável na estrutura da fobia.

Não podemos avançar no trabalho com a fobia sem abordar o significante. No caso de Hans, Lacan o ressalta bem, “é pouco tempo depois da aparição do sinal difuso da angústia que o cavalo vai entrar em função e é pelo desenvolvimento dessa função, por tudo que vai acontecer, por tudo que se vai fazer com o cavalo, seguindo o significante cavalo, a todo instante, e até o fim, que podemos chegar a compreender o que aconteceu, qual é a função desse significante cavalo”.

Hans nos diz a todo instante que foi “por causa do cavalo” que ele pegou a bobagem, ele evoca essa ladainha o tempo todo e Freud, nos diz Lacan, não pode deixar de apontar que uma associação de palavras pode ser feita entre wägen, o plural de wagen que significa carro em alemão e wegen, locução prepositiva que significa “por causa de”, e dizer que é assim que o inconsciente funciona: o cavalo arrasta o carro exatamente da mesma maneira que a palavra wegen arrasta atrás de si essa alguma coisa que não é nem mesmo um porquê.  Hans diz: “Wegen dem pferd (por causa do cavalo) eu peguei a bobagem”. Para Lacan, esse é o ponto exato onde surge a fobia, através de um processo típico, clássico: a metonímia, ou seja, o peso do sentido desse wegen, que fica inteiramente velado, é transferido para aquilo que vem logo em seguida: dem pferd (do cavalo), e é por isso que o termo “cavalo” vai assumir um valor articulatório, e é nesse momento que ele toma para si todas as esperanças de solução. Hans, nesse momento, está se debatendo com alguma coisa que não é nem mesmo um porquê, “pois para além do ponto onde as regras do jogo são respeitadas, não haverá mais do que confusão, não haverá mais do que a falta de ser”. Na falta de um porquê interrogativo, que pergunta, interroga, o que poderia trazer uma possibilidade simbólica, uma “resposta simbólica”, Hans introduz um porquê explicativo – o seu porquê explicativo – para tentar responder, mas esse porquê explicativo não responde a nada, já que ele se apresenta sob forma de um puro e simples x que é o cavalo. Freud considera que o termo “por causa de” abriu o caminho para a extensão da fobia dos cavalos, para os carros e Lacan nos diz que toda hiância da situação de Hans, nesse momento, vai ficar ligada a essa transferência gramatical.

Há várias passagens em que Lacan fala das vicissitudes da operação significante. Quando ele apresenta, por exemplo, o esquema da zona da rede ferroviária contígua à rua onde está o conjunto de casas, dentre as quais está a casa da família de Hans; isso está no caso, exposto por Freud, mas Lacan o explora de tal maneira que fica claro que abordando essa rede férrea, esses trilhamentos e cruzamentos de vias férreas, ele está evocando, ele está nos convocando a trilhar pela via do significante. Há um momento, quase poético, em que Lacan diz: “O pequeno Hans vai partir com os cavalos, e a prancha de descarregamento vai se afastar, e ele vai voltar a confluir – o que é muito desejado ou por demais temido, quem sabe? – com sua mamãe”.

Há uma fantasia que é chamada de a cena do cais. Nessa fantasia, Hans pensou que estava partindo de Lainz com a avó, a mãe do pai de Hans, que este ia visitar religiosamente aos domingos. A Lainzoense, como o pequeno Hans a chamava, deveria embarcar com eles no trem, mas o pai não conseguiu descer a passarela a tempo, e Hans e a avó partiram sem ele. O pequeno Hans relata que ele chega a tempo de tomar o segundo trem com seu pai. Como o pequeno Hans, que já tinha partido, voltou? Eis aí o impasse. Trata-se de um impasse que ninguém conseguiu elucidar, mas o pai de Hans se faz essas perguntas. No relato do caso, essa passagem leva umas doze linhas aproximadamente.

Voltemos ao cavalo. Lacan nos diz que o significante cavalo, quando é introduzido como ponto central da fobia, introduz um novo termo que tem como propriedade, primeiramente, ser “um significante obscuro”. Ao designar o cavalo como un signifiant obscur (um significante obscuro) Lacan associa pela assonância manifesta esse un signifiant (um significante) à palavra insignifiant (insignificante, em português). É por assumir a função mais profunda do significante, qual seja: o significante é aquilo que não significa nada, que o significante cavalo vai poder desempenhar o papel dessa lâmina que vai fender de uma nova maneira o real. É esse insignificante que arrasta o porquê de Hans que não responde a nada.

Nessa relação em que Hans está à mercê do jogo imaginário com sua mãe, oferecendo-se como falo para ela, sua entrada no complexo de Édipo vai se dar por uma rivalidade, Lacan nos diz, quase fraterna com o pai, trata-se de uma rivalidade do tipo especular, imaginária, ou eu ou o outro, e a fixação permanece naquela que se tornou o objeto real após as primeiras frustrações, ou seja, a mãe. O pai está impossibilitado de responder que o falo, o pênis real, é ele quem o tem. Ele não tem como introduzir esse elemento real na ordem simbólica, ordem simbólica esta que foi introduzida pela mãe, no real, com sua presença e sua ausência.

O Édipo se resolve de alguma maneira, nos diz Freud, e, ao final do complexo de Édipo, entre a idade de cinco anos e cinco anos e meio, há a formação de algo bem particular, trata-se de um núcleo que vai herdar o legado do complexo, o superego, e é aqui que somos confrontados com a necessidade de fazer surgir algo de novo, e que traz sua solução própria à relação edipiana. A lei não é mais apenas aquilo que permite que a comunidade dos homens esteja nela implicada e seja por ela introduzida. A lei assume uma via real, sob a forma desse núcleo deixado pelo complexo de Édipo, trata-se de um núcleo de consciência moral. E, em cada indivíduo, esse núcleo é encarnado sob as mais estrambólicas, as mais caricatas, mais variadas formas.

Por que isso é assim? Por que o superego vai se manifestar, se apresentar assim? Porque isso vai se estruturar no nível do Es, através de um acidente, de uma forma acidental, em que não se sabe em que momento do jogo imaginário se deu essa passagem, em que momento o pai, que esteve ali para responder, introduziu no nível do Es, como mais um elemento, como os outros elementos libidinais, o superego tirânico e que representa, inclusive nos não-neuróticos, a função de ser o significante que imprime no homem sua relação com o significado.

Em A significação do falo, Lacan escreve que o falo é o significante da falta de significante e que “é o significante destinado a designar em seu conjunto os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante”. O falo é esse significante que liga significante e significado. Ele é esse significante atípico que não remete a nenhum outro significante.

No que tange à função de ser o significante que imprime no homem os efeitos de significado, há evidente coincidência entre função fálica e função superegoica nessa passagem do Seminário IV. Pergunto-me se, na fobia, diante dos impasses com a questão fálica, com o falo, o sujeito, ao assumir uma metáfora fóbica, não está sendo guiado, forçado pelo superego a se sustentar nessa metáfora fóbica pela impossibilidade de aceder à função fálica.

Na impossibilidade de transmissão, pelo pai, desse elemento real em sua vertente real, momento em que se daria a introdução do sujeito infans no campo do desejo, pela via da castração, há falha.

A Lei se reduz inteirinha a algo que não se pode nem mesmo expressar, como o “tu tens que”, que é uma fala privada de todos os seus sentidos. O superego é um imperativo insensato.

Será que podemos dizer que a fobia seria então uma articulação entre o real da diferença sexual e essa lei imperativa e tirânica que, pela via do gozo, ele também real, força o sujeito a repetir no sintoma esse comando superegoico?


 

*Texto escrito para a Jornada do dispositivo Trabalho de leitura do Seminário IV, realizada em Outubro de 2021.