De rupturas epistemológicas ao drama subjetivo de Cantor

María Victoria Borges Díaz

Por muito tempo, em minhas aulas de filosofia, sobretudo quando se tratava de cursos de especialização, gostava de trabalhar o surgimento da ciência moderna e a ruptura epistemológica que aí se deu, em especial a da física, em relação ao que foi considerado impossível durante séculos: a matematização (geometrização) da natureza.

Koyré, de quem Lacan se aproxima em diferentes seminários, chama esse acontecimento de “revolução”. Revolução essa que, segundo ele, pode ser considerada “a mais profunda realizada ou sofrida pelo espírito humano desde a invenção do Cosmo pelos gregos”. A ideia de um mundo de estrutura finita, hierarquicamente ordenado, um mundo qualitativamente diferenciado do ponto de vista ontológico foi substituída pela ideia de um Universo aberto, indefinido e até infinito, unificado e governado pelas mesmas leis universais.

Importante seguir a advertência de Koyré: o que os fundadores da ciência moderna fizeram não foi simplesmente criticar e combater teorias erradas para corrigi-las ou substituí-las por outras melhores. “Tinham que destruir um mundo e substituí-lo por outro.”[1] Passagem de um ponto de vista natural (o do senso comum) para outro matematizado, geométrico que explica o real pelo impossível do qual temos um exemplo na física moderna: a lei da inércia, que tanto custou a ser conceituada, supunha que “os corpos que se movem em linha reta num espaço vazio infinito não são corpos reais que se deslocam num espaço real, mas corpos matemáticos que se deslocam num espaço matemático.”[2] Com isso, a noção de objetividade científica e mesmo de cientificidade mudou.

 A história dessa mudança supõe um tipo de história não linear, realizada no sentido da busca desses momentos em que, colocando em dúvida as certezas, limitando ou destruindo o saber até aí tido como um edifício inabalável, algo genuinamente novo irrompe. Os efeitos nos fundamentos da ciência, porém, só são percebidos muito depois, obrigando a uma história que vai do presente para o passado para verificar como se deram esses pontos de ruptura.

O livro de Virginia Hasenbalg-Corabianu[3]  – que, muito gentilmente, se dispôs a escutar o que tínhamos a dizer sobre os efeitos da leitura do mesmo – traça uma história da matemática onde se podem entrever as análises dos epistemólogos, Koyré, Bachelard, Canguilhem e dos historiadores da matemática por ela citados como Bell, Verdier. A insistência em mostrar o furo que a formalização do infinito por Cantor estabelece, designa, parece-me, uma ruptura epistemológica na matemática. Mas a diferença de abordagem salta logo à vista quando prestamos atenção para o título. Uma história da matemática que inclui Lacan (“De Pitágoras a Lacan”); uma história “não oficial” e “para o uso dos psicanalistas”.

Tal diferença se destaca não só por ter incluído Lacan nessa história da matemática, mas também por ter escolhido Pitágoras como ponto de partida e não Aristóteles que foi aquele que estabeleceu a distinção entre “infinito potencial” e “infinito em ato”; distinção essa que instigou durante séculos o pensamento humano. Pitágoras, no entanto, foi o primeiro que, ao buscar calcular a √2 (raiz quadrada de dois) e se deparar com um número cuja sequência não obedecia a uma certa ratio, que “não cessava de se escrever” – o impossível de Lacan – preferiu ignorar ou exclui-lo do cálculo, mas sem chegar a negar sua existência, embora tenha permanecido na ilusão de que chegaria o momento desses números se escreverem.

A introdução é esclarecedora porque vai dar o tom do restante da obra, no sentido de que ela “compara” os cortes epistemológicos singulares dos quais cada analisante é testemunha com as rupturas epistemológicas ressaltadas pelos historiadores das ciências. Mas, quando, de forma sutil, acrescenta que esses cortes, essas rupturas nas ciências “sempre residiram na emergência, em um sujeito, de uma pequena série de letras que subverte o saber estabelecido”, temos aí o salto dado pela autora-psicanalista em relação a qualquer outro do gênero, pela ligação dessas sequências de letras com a existência do inconsciente. “Trilhamento lacaniano em paisagem matemática, ou trilhamento matemático em paisagem lacaniana”, no dizer de Jean Brini, no posfácio.

Os epistemólogos falam dos obstáculos internos à própria ciência e, às vezes, das resistências do contexto social que se insurge contra a destruição de suas certezas; chegam a falar, inclusive, do drama do cientista que se propõe a ultrapassar limites estabelecidos. Não alcançam, no entanto, a tocar nos efeitos de subjetividade daqueles que descobrem/criam um saber radicalmente novo, que ameaça aquilo que sustenta o laço social e a ordem estabelecida. Menos ainda o que os move a continuar buscando dizer o que se propõem, chegando mesmo a serem condenados a abjurar de suas ideias, com o custo subjetivo dessa ação (caso de Galileu) ou a sentirem como fracasso não conseguir provar o que estavam descobrindo/criando, sofrendo crises psicóticas (caso de Cantor).

A psicanálise interroga-se sobre que espécie de vertigem é essa quando se chega a conceitos que nunca poderiam ter sido imaginados anteriormente e que, no entanto, estão lá. “Um novo dizer eclode, manifestação indubitável da ex-sistêcia de um sujeito, e os fundamentos do saber se abalam” (p.69). O “vejo mas não acredito” de Cantor a respeito dos resultados das descobertas/criações sobre o infinito atual que, por outro lado, só foi possível por uma outra descoberta sua, a teoria dos conjuntos, mostra o espanto diante daquilo que se pode escrever (ver?) mas não imaginar. (O Real? O objeto a?). Cantor mostrou o lugar de um furo ocupado por um número irracional e aponta para algo inacessível, designando com a letra aleph um lugar vazio, mas bem delimitado.

A autora vai conduzindo-nos pelas vicissitudes dos objetos e âmbitos da matemática: os números que servem para contar, os que não servem para contar, o “Um”, o infinito potencial e o infinito atual, um número racional e um número irracional, o limite, o discreto e o contínuo, o indecidível. Entremeado com eles: o sujeito que conta e se conta, o sujeito como corte, o Outro, o irracional do objeto perdido, o absoluto do desejo, o falo, o Real, o objeto a, a topologia, o nó borromeano e a teoria da cor, a alíngua, a sexuação. De forma mais precisa, ela procura nos números e na matemática, tal como Lacan o fazia, aquilo que mais se aproxima do inconsciente que, segundo ela, estaria na dialética entre o discreto (a cadeia de significantes ou o lado esquerdo da sexuação, lado masculino) e o contínuo (a cadeia sonora inscrita a partir da alíngua maternal ou o lado direito da sexuação, lado feminino)

Consta também, no livro, nossa experiência de aprendizagem da matemática na escola, nossa adesão ao senso comum, nosso encontro com números, mesmo os irracionais, numa ida ao supermercado ou para fazer o cálculo da aposentadoria. A partir desse quotidiano, mostra-nos o trabalho de abstração que a matemática teve que sofrer em sua constituição. A citação de Bertrand Russell que se pergunta: “quanto tempo a humanidade levou para perceber que entre dois camponeses e dois dias há algo em comum, a cifra dois?”, nos causa espanto porque é muito fácil para nós, hoje, conceber um número desligado de um referente sensível. E o livro percorre esse apagamento do mundo sensível como uma tarefa cumprida pela ciência, pela matemática e pela psicanálise com Lacan. Mas, essa caminhada tem um custo: o apagamento do mundo sensível só é concebível pela operação simbólica. Entre as cifras e os objetos, entre os números e as coisas e, podemos acrescentar, entre as palavras e as coisas “imiscuem-se esses intermediários que são os significantes que os nomeiam”. E nomear é perder. Perda essa que constitui o sujeito. Mesmo assim, há o privilégio do número, pois como diz Lacan, “o número é aquilo que na linguagem é o mais real”.

À medida que íamos avançando na leitura do livro e nos adentrando nas questões mais puramente matemáticas, auxiliados por Livia que recorria ao marido, embora ele estranhasse, como matemático, a abordagem de algumas dessas questões, havia em mim uma pergunta que não queria calar. Aliás, duas: por que se demorou tanto tempo para chegar a dar um lugar a esses números irracionais que não podem ser escritos em forma de fração e que têm uma sucessão infinita e não repetível de decimais? Por que o infinito atual se tornou um tabu só atribuível ou acessível a Deus? Achando que para responder eu teria que percorrer o pensamento sobre o infinito através dos séculos, tornando assim minhas questões potencialmente infinitas, deixei de lado.

No entanto, em um texto da autora com o qual fui deparar-me só depois de terminada a leitura em grupo, intitulado “O drama subjetivo de Cantor”[4], encontram-se, em forma de hipótese, duas possibilidades. O número irracional e o infinito atual são, para os gregos, do âmbito do impossível: não pertencem ao âmbito do sensível, ou em termos mais atuais do observável, do demonstrável. Ao permanecerem como indemonstrados, destaca ela, permitimo-nos viver na ilusão de encontrar a relação racional, a razão, a fração que o representa, o último decimal que iria permitir cair sobre a cifra que deteria a série. Tal ilusão “pode ser entendida como o álibi da impotência experimentada, seja na ‘temporalidade’ o que não é possível hoje, será possível mais tarde, ideia que a ciência não cessa de validar; seja na ‘espacialidade’: o que eu não sei, é possível que o Outro saiba.” Com isso, a autora coloca a questão: “Trata-se do lugar de Deus que fazia do infinito um tabu ou da função do sujeito suposto saber?”.

O fato é que Cantor ousou ir além e pagou um preço por isso. “Ao fazer do infinito em ato um objeto matemático, introduziu uma torção lógica, o que exigiu uma revisão dos fundamentos da matemática”, afirma no seu livro. Aliás, fez mais, abriu um para-além dessa lógica “divina” que confrontava o homem diretamente com a figura de Deus, sucedâneo do pai, e com sua vontade criadora (Descartes), um Outro supostamente habitado que estabelecia limites. Cantor defrontou-se com o Outro vazio? Sem dúvida, ele criou um espaço vazio, agora preenchido pela própria matemática. A matemática formaliza o limite numa estranha escrita feita de sequências de letras.

E ligada a essas interrogações, uma colocação feita no texto citado não me permitiu dar por terminada a minha fala pois surgiram inquietações que se colocaram de imediato como enigmas, sentindo dificuldade de articulá-las. O texto diz: “Há em Cantor coragem e loucura para sustentar, contra tudo e contra todos, a tese, afirmando uma nova definição do impossível. Na produção de seu matema, percebe-se uma maneira de não ceder de seu desejo”.

O que me capturou primeiro foi a palavra “coragem” pois associei com a definição tirada de um artigo de Czermak[5] que afirma: “coragem é a disposição para perder aquilo de que nos sustentamos”. E se questiona: “De onde vem tal disposição? Esta é uma questão crucial para a psicanálise”. Desfazer-se de tudo aquilo que sustenta alguém, não é deposição da subjetividade? Mas, por outro lado, não é o que as rupturas provocam?

Em relação à loucura de Cantor, pode dizer-se que se deveu a esse total apagamento do sensível, ou melhor, do imaginário? Há uma ligação entre as descobertas/criações da investigação matemática e os episódios delirantes de Cantor? Não é essa a mesma abstração provocada pela psicanálise, em sua formalização?

Já o trecho que coloca as artimanhas, inclusive o delírio de Cantor “para não ceder de seu desejo”, me suscitou a pergunta: A produção do infinito em ato, esse para-além absoluto, essa radical alteridade, esse desejo do impossível, pode ser nomeada ato ético?


 

* Texto apresentado na Jornada do Trabalho de Leitura “De Pitágoras a Lacan, uma história não oficial da Matemática”. A jornada ocorreu em agosto de 2020 e contou com a participação da psicanalista Virginia Hasenbalg-Corabianu.

[1] Referência ao livro: Koyré, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Ed Forense Universitária, 1991, p 155.

[2] Ibidem

[3] Referência ao livro que foi o tema do grupo que participou de sua leitura. As páginas correspondem à tradução realizada pela AEPM: Hasenbalg-Corabianu, Virginia. De Pitágoras a Lacan, uma história não-oficial da Matemática para o uso dos psicanalistas, 2018.

O livro foi traduzido para circulação interna na AEPM e uso no dispositivo de leitura coordenado por Livia Rocha e María Victoria Borges Díaz. Tradução: Periandro Ramos Barreto, María Victoria Borges Díaz, Maria Sílvia Antunes Furtado e Maria Virginia Moreira Guilhon. Título original: Hasenbalg-Corabianu, Virginia. De Pythagore à Lacan, une histoire non officielle des mathématiques à l’usage des psychanalystes. Éditions érès, 2016.

[4] Referência ao texto citado no livro: Le drame subjectif de Cantor por Virginia Hasenbalg.

[5] Czermak, Marcel. Sobre alguns aspectos frequentes em clínica. Texto disponível em: http://www.tempofreudiano.com.br/index.php/sobre-alguns-aspectos-frequentes-em-clinica/