Uma frase no livro De Pitágoras a Lacan[1] fisgou-me, não por sua dificuldade teórica, mas por me parecer curiosamente enigmática, “o infinito não é tão distante quanto possa parecer, o infinito está entre nós (…) quando ele não está em nós…” (p.37). Creio, agora, que é um bom modo de ser fisgado. Pois para se aproximar do que seria esse infinito em nós, é preciso ter muito viva a função do significante, não porque um se remete sempre a outro, ou porque se trata de S1, S2, S3… Sn. Esse “infinito em nós” é a própria operação do significante, é o significante em sua radicalidade. Ou seja, não só se trata de um troço que não é idêntico a si mesmo, é tipo um invólucro, mas oco, pois não tem significado, mais ou menos como se ele só marcasse um passo, um lugar. E como se não bastasse, há um significante que, diferente dos demais, não se dirige a nenhum outro significante, que é, podemos dizer, a própria função do significante, o falo.
Quando tomamos o infinito como aquele dos números inteiros, fazemos parecido com uma criança pequena, que mais ou menos no período em que se depara com a finitude do homem, e dela mesma, exibe sua capacidade, sua potência de já poder contar até 20, até 50, até 100… No caso da filosofia, além do infinito potencial, infinito de alguma coisa em potência mas jamais realizada, o infinito dos “amanhãs encantadores”, além desse encontrávamos um infinito em ato, uma espécie de todo que estaria colocado, um infinito reservado a Deus, única possibilidade, inimaginável, de ter acesso “a tudo ao mesmo tempo”. O livro de Virginia Hasenbalg me fez pensar que quando Cantor dessacraliza esse infinito, o que ele faz é revelar que Deus é um significante, como nos disse Lacan.
Cantor concebe “o infinito em ato no atual de uma presença” (p.28), sendo essa presença uma letra, o Aleph. Como se perguntássemos: quantos números tem na série infinita dos números naturais? Que cifra mediria essa dimensão? Qual o tamanho desse infinito? Nas palavras da autora, como colocar um limite no que está inacabado? Então, para a pergunta “quantos são?”, a resposta: Aleph. Cantor chega aí por uma operação de escrita, depois dos três pontinhos de reticência, indicando o infinito potencial dos números naturais, ou seja, quando sempre tem mais um a ser incluído, ao mesmo tempo em que acredito um dia fechar a conta. Bom, depois das reticências Cantor escreve um parêntese e nomeia “todo” esse infinito de Aleph. Ele inscreve essa quantidade infinita em ato. O Aleph é o infinito atual, que não exclui o infinito potencial, mas escreve um limite a este. O que mostra a complexidade dessa escrita é que ela é um salto, como observa Virginia Hasenbalg, passar do infinito dos números naturais para o infinito em ato é um salto, “salto como fronteira entre dois lugares definidos pela alteridade de um em relação ao outro” (p.81). E se isso pode nos fazer lembrar esse S1 que se dirige a um S2, penso que diz respeito ao que é a função do significante, a topologia do significante, pois se aproximamos o Aleph do falo, é para nos darmos conta de que a colocação desse falo, a colocação dessa função, é da ordem de uma escrita, porque não se passa por nenhum deslizamento, por nenhuma ponte, por nenhuma ratio, nenhuma operação racional de um ao outro, ou mesmo por uma retirada, uma extração do todo, enfim, não se passa da série dos significantes a esse significante falo a não ser por esse salto, por uma escrita.
E se o Aleph “mede” o tamanho do infinito dos números naturais, se ele é um cardinal que vem nomear, se é uma letra e um número, afinal concluo: não sei mais nem o que é um número! Não era para ser algo com que justamente eu conto as coisas, meço as quantidades, e com ele conto com as coisas? E nem precisamos esperar pelo Aleph de Cantor para saber que existem filhos ilegítimos na família dos números. Na verdade, estão mais para aberrações, até Cantor formalizar um lugar para esses números extravagantes, como os chama Lacan, “alguma coisa que sai do campo do Um”. Cantor o faz de novo pela escrita, pois esses números que não servem para contar só podem definitivamente existir quando Cantor lhes dá um lugar, e só pode lhes dar esse lugar por meio de uma letra, esses números são letras. Letras como invólucros que designam a presença de algo diferente de um número racional, natural.
Lembrei-me muito de uma coisa dita por Alayde Martins uns meses atrás na AEPM: Freud nunca deixava passar um número. Na hora me lembrei de alguns exemplos, o homem dos lobos, o cara que viaja no trem ao seu lado e diz aleatoriamente um número, alguns exemplos de A Interpretação dos sonhos, mas mesmo assim a colocação me pareceu curiosa. Não seria apenas a título de exemplo que Freud rastreava um número para mostrar como o inconsciente determinava nossa consciência, nossa vida, ou para, em um ou outro caso clínico, chegar a algum conteúdo inconsciente? Creio que não. Freud não deixava passar um número porque não deixava passar um significante!
O número irracional é inacessível porque é infinito em sua escrita, nunca se consegue escrevê-lo, são decimais infinitos e imprevisíveis. A série de Fibonacci nos mostra que é com os números racionais que delineamos, no infinito, um ponto, um número que, apesar da série irremediavelmente convergir para ele, nunca o alcança, e que faz um corte. Ele é o próprio corte nesses números racionais, os que ficam à esquerda, que o precedem, e os que ficam à direita, que o seguem. Por isso, como Virginia Hasenbalg coloca, um irracional define uma fronteira, um limite que separa dois mundos, que é um fosso absolutamente intransponível. Com esse irracional fazemos aproximação com o objeto a. Mas esse corte, esse fosso intransponível separando dois mundos me faz lembrar de S1-S2, posto que um jamais encontra o outro. Aliás, por que achamos que eles teriam que se encontrar? De onde tiramos essa ideia? Eles não se encontram, eles convergem ao infinito, mas não qualquer infinito, creio que eles convergem em ato, no atual de uma presença, eles são subsumidos numa escrita, por uma função.
Assim, os números racionais colocam um irracional que eles próprios não absorvem, não incluem, não tem lugar para o irracional nos racionais. Para mim, é esse furo, esse irracional, que estrutura essa borda, que estrutura esse “delineamento dos números racionais”. É como me aproximo de algumas passagens do livro: “a série infinita que limita um irracional equivale ao próprio irracional” (p.49), ou “qualquer consideração psicanalítica do significante exige a admissão de um furo fundador” (p.62).
Em ambos, Fibonacci e Cantor, há uma sucessão de números orientada de tal maneira que aponta para algo de inacessível. Mas desde que seja orientada. E aí o Aleph de Cantor permite abordar melhor. Os significantes rodeiam um furo, estando ordenados por uma função. Não se trata de um aglomerado de significantes, de uma pluralidade, de estarem todos lá ou não, mas de estarem encadeados, cadeia dos significantes, e, obviamente, o que é esse encadeamento.
O infinito atual, o Aleph, define um limite e um além do limite, mas, conforme entendi, é preciso não tomar isso na lógica do infinito potencial, em que um além é o que ultrapassou o limite, extrapolou, ficou de fora, de fora do jogo, dentro versus fora.
Sabemos que o que se tentou jogar fora volta, batendo na cara. Se o a é resto da operação do significante, esse irracional impossível de ter lugar na série, ele é uma exigência necessária quando se admite o significante. Virginia Hasenbalg escreve que a metáfora não esgota o que acontece na ordem do significante. Assim, me parece que o para-além está na própria lógica engendrada, é talvez a própria lógica, assim como o infinito está em nós. Por isso não se trata tanto de ter detectado um ponto de limite, algo além que não entra na lógica dos racionais, mas de colocar como princípio lógico esse além, esse impossível, “a emergência desse impossível como fato de estrutura” (p.65). Creio que isso é a operação do significante. É o que ele opera.
Lacan fala do momento de matematização do real, em que se decidiu partir categoricamente do impossível. Creio que se trata do impossível como categoricamente colocado no ponto de partida, não como conceito. É quando se abre na matemática um lugar para a escrita e a hipótese que Cantor deixara, mas acho que um lugar um pouco diferente, já que passa pelo termo do indecidível forjado por Gödel e Cohen no século XX. O significante, pontua Lacan, não é a medida, é algo que introduz o fora de medida, que alguns chamam de infinito atual.
Esse para além colocado pelo infinito atual é um para além absoluto, um além que subsome o “todo”. É para fazer ressonância em nossos ouvidos com o desejo como condição absoluta: “a dimensão do absoluto própria ao desejo apoia-se na noção de infinito atual” (p.80). No grupo discutimos o que seria esse absoluto. Algo, então, que põe em movimento uma outra coisa e que não depende de nada, não é engendrado por nada? Faz-me lembrar do Motor imóvel, o 1º motor de Aristóteles. Creio que não seja por aí. E o trabalho com esse livro me permite abordar de outro modo. Essa condição absoluta, na psicanálise, tem a ver com esse infinito atual, portanto com o que é “sem medida e sem proporção”, observa Virginia Hasenbalg (p.89). Então não se trata da ratio. Tem a ver com essa escrita, essa operação do significante, a colocação desses parênteses, no atual de uma presença, e ao mesmo tempo, ou a posteriori, a colocação desse irracional como eixo, esse impossível emergindo como fato de estrutura. É o desejo como condição absoluta, de um sujeito, de uma análise, da formação de um analista. A colocação entre parênteses dessa demanda de amor, demanda de reconhecimento infinita, o falo atualiza o infinito. Virginia Hasenbalg traz que é a condição absoluta do desejo que permite pôr um ponto final no circuito infernal de demanda à mãe. E que se não há palavras para expressar o desejo, contudo ele é suportado por um significante de exceção.
Assim, o analisante deve operar essa “passagem até o limite”, um para além da demanda próprio do desejo. Em outras palavras, como disse o senhor na loja de números, numa conversa em que é questionado sobre algo que pudesse representar as mulheres, os analistas ou homens que amam as mulheres, ele diz: “senhora, ai de mim! O infinito não é tão distante quanto possa parecer, o infinito está entre nós, me diz ele, e acrescenta murmurando, quando não está em nós…” (p.37).
*Texto apresentado na Jornada do Trabalho de Leitura “De Pitágoras a Lacan, uma história não oficial da Matemática”. A jornada ocorreu em agosto de 2020 e contou com a participação da psicanalista Virginia Hasenbalg-Corabianu.
[1] De Pitágoras a Lacan, uma história não oficial da Matemática para o uso dos psicanalistas, de autoria de Virginia Hasenbalg-Corabianu. O livro foi traduzido para circulação interna na AEPM e uso no dispositivo de leitura, coordenado por Livia Rocha e María Victoria Borges Díaz. Tradução: Periandro Ramos Barreto, María Victoria Borges Díaz, Maria Sílvia Antunes Furtado e Maria Virginia Moreira Guilhon. Título original: Hasenbalg-Corabianu, Virginia. De Pythagore à Lacan, une histoire non officielle des mathématiques à l’usage des psychanalystes. Éditions érès, 2016.