Trabalhar o texto freudiano d’A Interpretação dos Sonhos (1900), linha a linha, com alguns dos colegas da AEPM foi uma surpresa e uma alegria diferentes. Percorreríamos o célebre texto, enquanto trabalhávamos também o Seminário VI de Lacan – O desejo e sua interpretação. Logo, o Capítulo III – O sonho é a realização de um desejo, mostrou-se inevitável ponto de partida. Era surpreendente vermos, ou melhor, lermos o modo como Freud formulava suas questões.
“Se um sonho representa um desejo realizado, qual a origem da notável e enigmática forma em que se expressa a realização de um desejo?” (p.157).
É como se, com essa pergunta, Freud escancarasse: um desejo não é, se expressa, se faz representar; é tributário do significante, como depois nos ensina Lacan.
Um sonho está a serviço do sono, é seu guardião, diz-nos Freud. Daí os ditos “sonhos de conveniência” tornarem evidentes um desejo ali realizado. “O sonhar toma o lugar da ação”: se se tem sede, sonhar estar bebendo ou em busca de algo para beber pode se mostrar conveniente até certo ponto; se se vivenciou decepção/renúncia de algo em vigília, um sonho de compensação pode se produzir em retaliação ao experimentado, tal como o sonho da pequena Anna Freud que, na madrugada seguinte a um episódio de indigestão e consequente privação de alimentos, enquanto dormia exclamou: “Anna Freud, molangos, molangos silvestes, omelete pudim!”.
Mas o que dizer dos sonhos aflitivos e dos sonhos de angústia? Ou mesmo um sonho em que, aparentemente, a realização do desejo não se satisfaz como no sonho da bela açougueira? Como manter a afirmação de que “o sentido de todos os sonhos é a realização de um desejo?”
Há distorção nos sonhos. Mesmo aqueles que demonstram ser realizações de desejos, não expressam seu sentido sem disfarce. Os sonhos infantis parecem ser os mais indisfarçados. Só parecem. O sonho não é o inconsciente.
Distorção, do Latim distorquere, “virar para um e outro lado”, “fazer oscilar”; “alteração da forma ou de outras características estruturais; deformação”. A realização de um desejo obedece à forma enigmática dos sonhos, essa mesma, objeto do trabalho de interpretação do analista. A forma se altera para pôr em causa o próprio sujeito, sua intenção, sua posição de sujeito inconsciente. Assim, o conteúdo manifesto em um sonho é sempre expressão distorcida do pensamento onírico latente. Há transferência e deslocamento de intensidades psíquicas, novos valores se criam na formação do sonho e “é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sonho e o dos pensamentos do sonho.” Dois textos, duas escritas.
Deslocamento, condensação e sobredeterminação são os mecanismos responsáveis pelo trabalho do sonho no disfarce da realização de um desejo. Não deixa de ser interessante pensar que o desejo se expressa disfarçadamente, veste-se de elementos substitutos, fantasia-se, inverte, subverte relações lógicas no espaço, na temporalidade. O desejo no sonho é o desejo possível ao parlêtre. Isso que articula duas cadeias, duas escritas presentificando o sujeito no mesmo instante em que o apaga.
Os elementos que aparecem no sonho são significantes. Em geral, são a condensação de diversos pensamentos oníricos que sofreram deslocamentos a fim de driblar a censura. Freud parte desses elementos, atravessando as séries de associações que deles afluem, sem negligenciar o valor das semelhanças existentes na pronúncia ou na escrita de determinadas palavras, o valor das substituições ali produzidas, das oposições, das intensidades com relação aos afetos, ao colorido e às formas das imagens.
Embora reconheça a importância das fontes somáticas de estimulação na formação dos sonhos, Freud afirma que são as impressões psiquicamente significativas (material recente/irrelevante e o material infantil) a fonte determinante dos sonhos. As lembranças e impressões infantis no cerne da relação do sujeito com o desejo, com o seu e com o do Outro. Tal aspecto não escapa à Freud. Um sonho é interpretado sob transferência. Para interpretar, contava com sua escuta, com elementos já “sabidos” da história do analisante e, mais ainda, com as cadeias associativas que também lhe surgiam.
O analista participa do sonho de seu analisante?
Lacan nos lembra que despertamos de um sonho para continuar sonhando. Acordados, sonhamos nossa realidade constituída simbolicamente. Capturado na ficção, na divisão imposta pelo significante, o sujeito mantém certa distância do real do desejo. Insuportável. Seu despertar é corte, a cada vez. Despertar do sujeito, despertar do desejo.
* Texto escrito para a Jornada do Trabalho de Estudo dos Textos de Freud, ocorrida em abril de 2022.