A leitura do texto do sonho em Freud

Cristiano Henrique Pereira Silva

Durante o trabalho de leitura e estudo do texto freudiano A Interpretação dos sonhos, vieram-me, frequentemente, questões clínicas interligando o que Freud vai apontando como um trabalho de leitura do texto do sonho – contando o que nele é um conteúdo manifesto e o que se encontra latente, sob efeito de censura – e o trabalho do analista na direção de um tratamento, contando com que se apresenta como encoberto, velado, e que nos aponta para uma outra cena. Parece-me mesmo que o texto tem essa missão, direi assim. Apontar-nos a existência de uma outra cena, tendo como ponto de partida o que é contado, pelos pacientes, a respeito dos seus sonhos.

Nesse intuito, Freud desenvolve seu texto trazendo elementos que vão demonstrar a ocorrência de uma deformação onírica, de um deslizamento, algo que está, no sonho, como um ponto de censura. Ao longo do texto, Freud nos fala sobre os resíduos diurnos que hão de comparecer nos sonhos, bem como as vivências irrelevantes, as substituições… E nos põe diante de um conteúdo latente mais relevante do que aquele que é manifesto, quando nos implicamos em um trabalho de interpretação dos sonhos.

Essa interligação que me vinha entre o trabalho com os sonhos e o trabalho do analista levou-me ao texto A direção do tratamento e os princípios do seu poder, de 1958, em que Lacan nos diz: “dizer que a doutrina freudiana é uma psicologia é um grosseiro equívoco. Freud está longe de alimentar esse equívoco. Adverte-nos, ao contrário, de que no sonho só lhe interessa a elaboração. Que quer dizer isso? Exatamente o que traduzimos por sua estrutura de linguagem”. Confesso que, inicialmente, tomei o texto freudiano muito a partir de uma didática, um ensino de como interpretar corretamente um sonho, atribuindo a ele um sentido a ser revelado pelo analista. No entanto, o que se mostra na construção do trabalho de Freud nesse texto, na elaboração dessa obra a respeito da interpretação dos sonhos, é justamente esse interesse que Lacan observa. O interesse de Freud em uma elaboração. Mas elaboração de quê? Da história que o sonho conta e os seus significados? Ou desse texto pelo qual o sonho se conta e é contado?

O sonho só passa a existir quando é contado. E parece que é isso que Freud vai expondo, por meio de diversos exemplos.

Freud nos deixa claro que não há necessariamente apenas um sentido para o sonho que é sonhado. Ou seja, para o sonho que nos é contado. Ele nos apresenta aí uma abertura. E isso me pareceu muito clínico. O trabalho do analista com os sentidos possíveis a partir daquilo que é escutado, dentro de associações. O lugar do texto do sonho, na fala do paciente, e aquilo que vem sendo dito antes, e que vai ser dito depois. Lacan escreve: “para confirmar a pertinência de uma interpretação, o que importa não é a convicção que ela acarreta”. Enquanto estrada, caminho, via para o inconsciente, o sonho traz, em seu texto, um testemunho. Então, o que o texto do sonho declara? Como é que Freud aborda isso que o texto do sonho revela?

Freud considera mecanismos inconscientes: a condensação e o deslocamento no trabalho do sonho. A análise do sonho desvelará, portanto, o que é psiquicamente relevante na vigília, e que no sonho pode aparecer sob o recobrimento de uma censura, a lembrança deslocando a ênfase para algo mais irrelevante. Lacan escreve: “os mecanismos inconscientes atestam a relação do desejo com essa marca da linguagem, que especifica o inconsciente freudiano e descentra nossa concepção de sujeito”. Logo, estamos diante de uma marca. O que penso nesse momento em que escrevo é que essa marca, dada pela linguagem, tem a possibilidade de ser lida. “A elaboração do sonho é alimentada pelo desejo”, “o sonho é feito para o reconhecimento do desejo”, “o desejo, se Freud diz a verdade sobre o inconsciente, só é captado na interpretação”, escreve Lacan, no item “é preciso tomar o desejo ao pé da letra”. É isso, então, é na letra. E Freud escreve seu texto sobre os sonhos indicando justamente o lugar da letra na interpretação.

Em uma parte do texto, Freud diz: “não existem sonhos inofensivos”. Logo, me vem a questão: o que se esconde por trás dos sonhos? Para Freud, eles não são, de forma alguma, inocentes. E ele nos diz ainda que, nos sonhos, “o sexual é um motivo óbvio de censura”. Como isso resvala na clínica psicanalítica? Creio que no trabalho do analista com aquilo que irrompe de um falante que, ao falar, pode ser escutado, e, por sua vez, ao ser escutado, um texto aí elaborado (seja como um sonho) pode ser lido. Esse é o trabalho.


 

* Texto escrito para a Jornada do Trabalho de Estudo dos Textos de Freud, ocorrida em abril de 2022.