Desejo e angústia

Alayde Martins

Afinal, é na medida em que um saber é constituído num trabalho de elaboração de análise, o qual diremos mais comunitário do que coletivo, entre os que têm a experiência dela, os analistas, que se torna concebível um trabalho de agregação que justifique o lugar passível de ser assumido por um ensino como o que se faz aqui. (Lacan, Seminário 10, p.26).

 

Alguns recortes do Seminário 10, como pontos de partida, foram retirados da lição onde Lacan introduz o assunto do Seminário. É importante que numa leitura do texto escrito, as referências sejam lidas nos seus contextos.

“Vocês verão que a estrutura da angústia não está longe dela (da estrutura da fantasia), em razão de ser exatamente a mesma. ” (p.12).

[como psicanalistas] sentir o que o sujeito pode suportar de angústia os põe à prova a todo instante. ” (p.13).

[…] uma formulação que lhes indicasse a relação essencial da angústia com o desejo do Outro.” (p.14).

“[…] a questão que há muito introduzi como sendo o ponto de articulação dos dois andares do grafo, na medida em que eles estruturam a relação do sujeito com o significante, que, segundo me parece, deve ser a chave do que a doutrina freudiana introduz sobre a subjetividade: Che vuoi? Que queres? Forcem um pouquinho mais o funcionamento, a entrada da chave, e terão Que quer ele de mim? [Que me veut-Il?] com a ambiguidade que o francês permite no mim [me] entre o complemento indireto ou direto. Não se trata apenas de Que quer ele comigo?, mas também de uma interrogação em suspenso que concerne diretamente ao eu: não Como me quer ele? Mas Que quer ele a respeito desse lugar do eu?” (p.14).

“A pergunta fica em suspenso entre os dois andares, e precisamente entre as duas vias de retorno que designam em cada um o efeito característico. A distância entre elas, e que estará no princípio de tudo que percorreremos, torna homólogas e distintas, ao mesmo tempo, a relação com o desejo e a identificação narcísica. ” (p.14-15).

 

 

Todo o percurso de Lacan através do grafo dá-se exatamente para delinear seus termos e seu funcionamento no sujeito. Isso permite que a posteriori, possa ser factível mostrar que o percurso de uma análise através da dessubjetivação, ou seja, da sustentação cada vez maior no significante, no Outro, e em proporção inversa no eu, na imagem de si e no outro, o semelhante, atravessa a fantasia e impõe ao sujeito uma relação Outra com o desejo que não seja apenas através do sintoma. Esse percurso é pautado pela angústia.

No Seminário 6, O desejo e sua interpretação, Lacan faz uma precisão topológica entre desamparo, desejo e angústia:

“Ante a presença primitiva do desejo do Outro como obscuro e opaco, o sujeito encontra-se sem recursos, hilflos. A Hilflosigkeit – emprego o termo de Freud – diz-se em francês détresse, o desamparo do sujeito. Aí se encontra o fundamento do que, na análise, foi explorado, experimentado, situado como a experiência traumática. […] Freud faz da angústia algo totalmente inserido numa teoria da comunicação: a angústia é um sinal. Supondo que o desejo deva se produzir no mesmo lugar onde, inicialmente, se origina e experimenta o desamparo, não é no nível do desejo que a angústia se produz. […] Freud nos diz que a angústia se produz como sinal no eu, com base na Hilflosigkeit que, como sinal, ela é chamada a remediar.” (p.26-27).

 

Para sair da angústia, se lance no desejo. (Antonio Carlos Rocha).

 

O próximo, o semelhante, não é heim, diz-nos Lacan. Atirar-se no Abismo do desejo do Outro, é atirar-se no vazio fundamental do Outro, vazio da falta de um significante no Outro que dissesse ao sujeito o que ele é aí.

Então, como não se agarrar na Demanda do Outro, confundindo-a com seu desejo? O que o sujeito neurótico deseja é que lhe demandem, que lhe façam uma pergunta, um pedido. Mas o Outro não quer nada. O sujeito substantiva o Outro no outro através da Demanda. Faz-se ser ou ter o que supõe que o outro quer dele, sustentando-se na fantasia de que se há falta no Outro, desejo no Outro, essa falta é passível de ser saturada. O amor, no qual toda Demanda se colapsa, coloca ao sujeito a possibilidade de dar o que ele não tem àquele que não quer nada. É o mais paradoxal eixo de manobra da neurose, pois supõe um querer no outro e um “ter a dar” naquele que, assim, acredita existir em sua consistência imaginária. O dom de amor, o que é nele tornado objeto e como tal, signo de amor, é uma garantia que apazigua.

É preciso fazer o luto do falo para alçar o desejo. Mas o neurótico não quer dar nada, perder nada, mesmo que aparentemente dê tudo. Mas é um dar que oculta aquilo que ele não quer ceder ao Outro, ele o dá desde que não dê o que ele supõe que o Outro deseja, sua falta.

Seu desamparo é superposto pelo “ser (estar sendo) caído”. Como o objeto a, ele cai a cada vez que sua falta de sujeito comparece. E é disso também que se faz um percurso de análise. Acontece que a queda, o ser caído, é temida como se fora abandono, e pode ser vivida como desamparo.

Lançar-se no Abismo é ter coragem para seguir adiante renunciando ao que o sustenta, à ilusão narcísica, à imagem ideal, pela qual o neurótico, sem saber, paga o preço com a sua vida. Assim, na neurose, a angústia é a garantia. Ela garante a distância desse Abismo. A escolha forçada da neurose é antes viver na ameaça de castração do que no vazio do Outro.

Desejar é viver o paradoxo da transgressão, da desobstrução das vias suturadas pela Demanda. Mas a transgressão aciona a culpa, pois a cada um ela dá a notícia do limite que se ultrapassou. A coisa, no entanto, é fora do campo dos significantes, fora do campo do sujeito do desejo. Ela está no real que só a-bordamos pelo simbólico ou pelo imaginário.

Escrever pode ser um ato de entrega daquilo que não se tem, que não se sabe, àquele que não pede nada. Escrever pode ser arriscar-se naquilo que aparece no texto, pode ser um ato de dom. É sempre uma chance de deixar-se cair, cair-se, lançar-se no vão do Outro. É dolorosamente ou alegremente, não importa, submeter-se ao que as letras ditam às palavras.

Pode-se, porém, não ter se visto na chance e se escrever sobre aquilo que se sabe, organizar o que se aprendeu e mostrar, antes de mais nada, a si mesmo, um avanço teórico. Ainda assim, a letra escapa.

Posso, como estou agora, perder-me no texto, e me perdendo, perder alguma coisa. Não há vida sem perda.

Escutei algumas vezes do Antonio Carlos que a “fórmula” para aplacar a angústia é lançar-se no desejo. A cada vez e não de uma vez por todas! As consequências, o imprevisível, o não-sabido (porque é só-depois que se sabe), dispensa (um pouquinho) a crença no fálico e sustenta a causa. Na letra, no vazio, no nada.  No intervalo entre os significantes onde ex-sistimos no Outro.


 

*Trabalho lido na Jornada dos Carteis Lacanianos em 11/06/2022