O falo, o luto e o desejo

Fabiano Monteles Sousa

O trabalho com o seminário O desejo e sua interpretação foi para mim uma verdadeira travessia, em que foi possível atravessá-lo e ao mesmo tempo ser atravessado por ele.

Escrever sobre esses atravessamentos coloca em jogo perdas, uma vez que, dos vários pontos em que fui tocado, um deles é realçado nesse momento: o falo em um tratamento e sua relação com o desejo. Refiro-me ao momento em que Lacan se debruça sobre a análise de um sonho apresentado por um analisante de Ella Sharpe, em que este relata que teve um sonho enorme e que lhe resta apenas um fragmento: “Estava fazendo uma viagem com minha mulher ao redor do mundo e tínhamos chegado à Tchecoslováquia, onde todo tipo de coisas aconteciam […]”. Acompanhando esse relato, as associações desse paciente e a intervenção da analista, Lacan situa alguns pontos que passam despercebidos pela analista, de modo a “articular melhores modos de direção.”

“Que o sonho tenha um caráter masturbatório é algo que a analista admite, porque tudo que aparece depois nos dizeres do sujeito se coordena com isso. Mas esse falo do sujeito, ela é levada imediatamente a considerá-lo um instrumento de agressão, de destruição, de um tipo extremamente primitivo, tal como brota do que poderíamos chamar de coleção de imagens analíticas.” 

Lacan coloca as seguintes questões que ressoaram muito em mim: “[…] esse falo, onde está? Onde devemos conceber que ele esteja? O que sabemos a seu respeito?”. O curioso é que enquanto Lacan trabalhava com essa questão, fiquei me interrogando sobre a importância do falo em um tratamento, não no sentido de positivá-lo, mas de pensar a relação do falo com o desejo em um trabalho de análise.

Acompanho Lacan quando este considera “que aquilo de que se trata está estritamente relacionado com os significantes. Se nos indagamos onde está o falo, é nessa direção que devemos procurar […]. Esse falo, nunca está onde esperamos, mas ainda assim, está lá. Está lá como a carta roubada, lá onde menos se espera e onde, contudo, tudo indica que esteja. Para exprimi-lo como a metáfora do jogo do xadrez nos permite articular, eu diria que o sujeito não quer perder a sua rainha.”

O destaque feito em relação ao com minha mulher nesse fragmento do sonho é interessante porque aponta que esse falo fora do jogo é representado pelo personagem que menos pensaríamos ser seu representante – sua mulher. É porque sua mulher é seu falo que cometeu esse lapso ao falar: fazer uma viagem com minha mulher ao redor do mundo e não ao redor do mundo com minha mulher. A onipotência é posta pela analista no ao redor do mundo, quando Lacan situa que o segredo dessa onipotência está no com minha mulher, pois o importante para ele é não perder isso. Exatamente o que o sujeito não quer fazer de jeito nenhum, sacrificar a sua rainha, “porque para ele o significante falo é idêntico a tudo que aconteceu em sua relação com a mãe.”

Esse ponto abriu essa possibilidade de pensar: e o papel do falo nos sonhos? O que me chama a atenção nesse momento é essa perda. E é nesse momento que encaminho a minha questão para o luto do falo. Por que é tão importante que esse luto do falo se dê e qual a relação disso com o desejo? Pensar no desejo é pensar também na fantasia, nisso que Lacan nos fala que apresenta uma estrutura sincrônica, marcada por esse enfrentamento perpétuo do S barrado com o a.

Para Lacan, o luto é uma perda verdadeira, intolerável para o ser humano, provoca-lhe um buraco no real, buraco que oferece o lugar onde se projeta precisamente o significante faltante. Significante essencial à estrutura do Outro, aquele cuja ausência torna o Outro impotente para nos dar a nossa resposta. Esse significante, só podemos pagá-lo com a nossa carne e nosso sangue. Ele é essencialmente o falo sob o véu. Esse significante encontra aqui o seu lugar e ao mesmo tempo não pode encontrá-lo, pois não pode se articular no nível do Outro.

Como esse luto do falo se coloca em um trabalho de análise? Lacan ao tratar da questão do declínio do Édipo destaca que, para Freud, o falo é a chave, constitui o drama essencial do Édipo, na medida em que marca a articulação e a virada que faz o sujeito passar do plano da demanda para o do desejo. É em torno do luto que se joga esse declínio, o sujeito tem de fazer o seu luto pelo falo.

Depois de escrever esse texto, fui relê-lo e algo se destacou para mim desse ponto e decidi acrescentar nessa escrita: luto pelo falo e luto do falo? Esses dois modos de dizer a mim ressoaram como diferentes.

Quando Lacan trabalha com Hamlet esse ponto volta a trazer interrogações uma vez que ele situa que na tragédia de Hamlet, diferentemente da tragédia edipiana, “depois do assassinato do pai, o falo continua lá. Está todo lá, e é justamente Cláudio que é encarregado de encarná-lo. Do falo real de Cláudio, é disso que se trata o tempo todo.” Para Lacan, o falo está em posição ectópica com relação a posição edipiana, nesse caso o falo é efetivamente real, e é a esse título que se trata de golpeá-lo e Hamlet sempre se detém antes de fazê-lo. Ao abordar o torneio do qual Hamlet faz parte destaca que “é sem saber que ele entra no mais sério dos jogos” aquele que, no encontro com o outro, se identificará com o significante fatal, o falo mortal.

Com esses elementos que ficaram produzindo desassossego nesse tempo de trabalho e durante essa escrita, coloco aqui esse emaranhado que não está claro para mim. Mas algo nessa travessia me tocou aí.


 

*Texto escrito para a Jornada do Seminário na AEPM, ocorrida em junho de 2022, a partir do Seminário VI de Jacques Lacan: O desejo e sua interpretação.