Sobre os Cartéis

Alayde Martins

Ano passado convidei os Membros e os Candidatos à Formação a se disporem em cartéis na AEPM.

O trabalho na Jornada de Cartéis bem como o caderno com a publicação dos textos produzidos por cada um pode dar provas do que foi o resultado desse convite.

Algumas perguntas ressoaram durante esse período, o que me fez retomar aqui alguns pontos que articulei com e para o trabalho com os Cartéis Lacanianos.

Primeira coisa: com o que contamos quando nos reunimos em cartéis?

No trabalho do cartel poderíamos contar com a falta em cada um, de cada um. O +1, também, só podendo encarnar sua função a partir daí, da falta, já que é daí que ele ele funciona no -1. Dionysia fala em seu texto[1] sobre lugares, pensando-os através da vizinhança. Vizinhos mantêm-se em lugares próximos, mas diferentes. O discurso de cada um pode manter-se no respeito, no limite, a essa diferença dos lugares.

Segunda coisa: os lugares determinam hierarquia através do conhecimento?

Nos cartéis não haveria a certeza dos fechamentos conceituais da mestria, mas sim a busca do entendimento do texto, sabendo que há um percurso que só é possível porque cada um conta com o que vem do outro. Assim, esse outro podendo ser qualquer um, conta, porque sua palavra entra, a cada vez, para os outros; sendo assim, cada um é representante do Outro barrado, porque sua palavra não fecha, não serve de denominador comum, não cala os outros, mas abre o buraco para cada um colocar o que é seu. Sem fechamento, mas com um entendimento possível, também a cada vez, avançamos um pouco mais no estudo dedicado.

Terceira coisa: Lacan não desenvolve um sistema.

Os Seminários de Lacan, se nos damos conta disso, ele não os fecha. Podemos concluir, mas concluir não é fechar.

Quarta coisa: o funcionamento em cartéis é possível?

Eu não acho que funcionar em cartel seja uma idealização, algo inviável. A proposta do cartel foi indicada por Lacan para aqueles que estavam em análise, aliás, sua proposta inicial foi feita para os analistas. Então, posso considerar que se eu escuto cada um de meus pares, se posso suportar o caminho absolutamente ímpar por onde cada um caminha, se é possível que isso seja sustentado pelo mais um e por cada um no cartel, posso apostar nesse trabalho. Apostar não é uma coisa simples, como nos mostrou Lacan. Apostar é perder algo na entrada, pois o que é seu e que foi posto em jogo, para que se pudesse entrar no jogo, está perdido. Assim, acredito que para funcionarmos em cartel, cada um perde de entrada um tanto de seu funcionamento narcísico, e mais alguma coisa.

Sem prevalência de um saber, e sim fazendo funcionar a falta como agente, o cartel é para cada um o lugar onde o que vale mais é colocar um grão para fazer o trabalho avançar naquele encontro, naquela vez. A próxima ficando de novo em aberto ao desejo de cada um, contando com essa abertura em cada um.

Quinta coisa: e o mais um?

A função do +1 é fazer isso funcionar. Corte, convocação, circulação da palavra, incluindo a sua, que, ao contrário da palavra do líder do grupo, não fecha com o enunciado de um saber arrumado, elucidado. Nesse ponto, outra vez, me aparece a ideia de que o cartel só é possível para aqueles que já percorreram uma análise, isto é, que estão em análise, já que a única coisa que sustenta o lugar do +1 é a falta constitutiva de cada um. E que, a cada encontro, o cartel abre para se fechar, de novo. Lembrando a superfície topológica do Cross-cap, retomo uma interrogação e trago aqui o ponto em que Lacan pergunta o que essa superfície sustenta. E responde: o lugar do buraco. “Essa superfície assim estruturada, é particularmente propícia a fazer funcionar, diante de nós, esse elemento, o mais inapreensível, que se chama de desejo enquanto tal, em outras palavras, a falta”.

 

[1] Referência ao texto de Dionysia Rache de Andrade, O cartel é uma superfície topológica?, disponível em: https://aepm.com.br/index.php/2021/09/23/o-cartel-e-uma-superficie-topologica/