O discurso analítico ou interrogar como saber o que se refere à verdade

Sílvia Furtado

Encore, un corps, um corpo, la jouissance, o gozo, e o j’ouïs sens, ouço sentido. Mais ainda, corpo, gozo e sentido. Mas isso que nos traz Lacan, em toda sua polissemia, passa por onde? Um repuxo, um empuxo, que a cada vez permite dizer: de novo, encore. Passa por um fio que traz em si o inconciliável e o vazio próprios ao falante.

Começamos pelo que Melman nos deixou nas páginas da ALI: “O saber possui vocês e vocês tentam possuir o conhecimento; o saber engaja a participação do sujeito e coloca em causa a sua ética.” Uma pequena narrativa pode dar a dimensão desse assujeitamento, sem escolha: de trás para frente. A avó dizia assim, sem estar referida a qualquer coisa: entre les deux mon coeur balance. Era o galicismo que invadia as escolas do início dos 1900. E a neta se perguntava o que ela queria dizer quando lhe dizia isso, assim sorrindo. Até hoje ela não sabe. Mas, de alguma forma, era uma pergunta que a cutucava, dizendo-lhe que era assim, que podia ser assim, que ali havia um pêndulo que oscilava e esse pêndulo escorria junto ao eterno. E foi assim que um dia, quando não havia ninguém em casa, a avó, desavisadamente, entrou no quintal e deixou um ovo cair com a gema e a clara a esparramar-se pelo chão de cimento. Pelo quintal, deixou também para neta um patinho e foi embora; ao chegar em casa, a visão do patinho e do ovo quebrado com gema e clara estarreceu a pequena que não conseguia admitir o nascimento do patinho que não fosse somente da casca do ovo. Não, ali tinha mais alguma coisa. Ele não saiu da casca do ovo, como dizia a canção. E, nesse minuto, vieram-lhe simultaneamente as ideias de que o giz acabava, escrevia-se e o giz acabava, não havia mais giz. E junto a essa finitude, vinha o relógio, cujos ponteiros não paravam de girar. Ah, o ponteiro não nos concede ficar um pouquinho ali naquele horário, quando entrávamos ali, já saíamos. É fugidio.

Essa noção de tempo e espaço que se apresentava como um shazan, eureca, ou mesmo como o Aleph de Cantor ou de Jorge Luis Borges e ela ainda não sabia, isso lhe abria uma possibilidade de acolhimento desse vazio. Mas esse vazio que se revelava assim, que irrompia e entristecia, ele também clamava por um lenitivo que viesse amparar o ser. Ainda que não soubesse que esse desamparo já estava lá antes, Nebenmensch, nos disse Freud, dedicaria a sua vida para chegar a isso que já tinha entrevisto. Mas, antes de retornar a isso, assim, de colocar isso em letra, foi possível saber que é assim, encore, de novo, mais, ainda.

Na lição 4, do dia 9 de janeiro de 1973, temos que “o discurso analítico é esse modo de relação nova que se fundou somente pelo que funciona como fala, função e campo da fala e da linguagem em psicanálise.”[1] É assim que entra no mundo esse discurso, e que neste se trata “do que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito a dizer… a dizer não importa o quê”, tolices. O que importa aqui é “a função do que se lê” e isso é “um ensinamento do qual eu sou o efeito”[2]! E não é no tecido da análise, na movimentação dos fios, que a cada vez, nos deparamos com:  de novo, mais uma vez, ainda, mais: encore?

Lacan traça o fio em que se situa o escrito e a leitura, a partir do discurso analítico, das quatro letras que o constituem: a, S barrado, S1 e S2. E nisso já introduz o que é a disparidade subjetiva na transferência, que o analista, ali, é um lugar, que ele só pode estar ali, operando a partir do semblant de “a”, sustentado por um saber sob a barra, S2, que está no lugar da verdade, dentro da transferência, convocando o sujeito, S barrado, produzindo S1, que está disjunto do S2. O analista funcionando assim, neste lugar, a partir da letra, convocando o sujeito. Mas, para além do discurso analítico, Lacan acrescenta também três letras ao discurso da psicanálise: A, a e Φ, com as quais ele vai avançar na lição 9, do dia 20 de março de 1973: traz o A como um lugar, mas é um lugar que não se sustenta, Lacan o escreve como um S, um significante da falta do A, um S de A barrado, uma falha, um buraco. E diz que é a partir desse buraco que o pequeno a funciona. Então, o discurso psicanalítico inclui essa falta radical; se A é um lugar, é um lugar de perda. Lacan também traz o Φ, o termo falo, uma letra que se distingue das outras, é a introdução de uma nova dimensão. E essas três letras não são da mesma cepa que o significante, nos diz Lacan.

O discurso é considerado uma fundação, já que não há realidade pré-discursiva, cada realidade se funda e se define por um discurso. É no discurso que se ordena a relação sexual, não há homens, mulheres, crianças em uma realidade pré-discursiva, pois homens, mulheres, crianças são significantes. E a partir deste momento, Lacan vai desbastando toda a substância que poderia ser imputada a esses significantes: “um homem não é nada além de um significante. Uma mulher procura um homem a título de significante. Um homem procura uma mulher […] a título do que só se situa a partir do discurso, […] pois a mulher é não toda, há sempre alguma coisa nela que escapa ao discurso.”[3]; a longa incursão que Récanati faz pela lógica e pela gramática de Port-Royal, é para nos mostrar que na copulação entre sujeito e predicado, o que se constrói é a possibilidade de atribuir uma substância ao ser a partir do predicado; mas o que se mostra é que não há substância no ser, ela só existe na substancialidade do predicado.

O significante foi introduzido a partir da linguística, a partir de algo que, no campo em que se produz a palavra, não é evidente. Parece simples, mas na verdade, o significante não é evidente, foi preciso que a linguística o mostrasse. Por outro lado, entre a linguística e a linguisteria há um divórcio. Quando falamos, isso que falamos se significa no momento em que falamos, não há significantes, tecemos nosso discurso com palavras e com as significações que supomos estar nelas. No entanto, isso não se sustenta em uma função de significação. Não há garante de que que a significação já esteja lá, porque a significação é o outro quem dá. E Lacan nos adverte: o que vocês ouvem não tem relação com o que isso significa, nenhuma relação: “é um ato que se institui senão por um discurso dito científico, e isso não é evidente”. Falamos apoiados em uma suposta relação das palavras, que buscam estabelecer os vínculos entre o conceito e a imagem acústica, isto é fazer signo, esse é o amor da língua. Mas, por outro lado, isso não é evidente. E foi preciso Freud nos dizer que há algo que fala no sujeito a despeito do que estabelece a sintaxe da língua e Lacan nos mostrar que isso está estruturado como uma linguagem.

O significante se refere a um discurso, a um modo de funcionamento da linguagem, a uma utilização da linguagem como laço. E o que quer dizer esse laço? Lacan nos encaminha para o viver, que comporta vida e morte ao mesmo tempo, o que nos leva à reprodução sexuada; e diz Lacan: “essa é a ambiguidade que resulta do significante”; e o significante não tem a ver com os ouvidos, mas com a leitura do que se ouve do que se diz.  O que se ouve não é o significado, é o significante, o significado é efeito do significante, existe algo que é efeito do discurso. Lembro de Marguerite Duras, a partir de Jacques Hold, que “abre sepulturas” a cada enunciação, inscrevendo o que é letra morta. E lembro de uma questão que me veio em um trabalho: é entrando nessa vida que tecemos nossa mortalha de letras?

Ao mesmo tempo em que entramos na linguagem, mergulhamos na linguagem, jubilamos, submetemo-nos a um saber: “um saber que não comporta o menor conhecimento, já que está inscrito num discurso do qual, à semelhança do grilhão de antigo uso, o sujeito que traz sob a sua cabeleira o codicilo que o condena à morte não sabe nem o texto, nem em que língua ele está escrito, nem tampouco que foi tatuado em sua cabeça raspada enquanto ele dormia.”[4] Estamos apartados daquilo que constitui o que há de mais íntimo no ser, o kern do ser. E não é a isso que uma análise nos leva? A esse não-saber que salta inesperadamente, que vem de um Outro lugar, que se enuncia, que nos habita e que só podemos encontrá-lo no que Lacan denomina de prosopopeia, essa coisa que fala em nome próprio, a verdade: “Eu, a verdade, falo: […] Ali onde a fala mais cautelosa exibe um ligeiro tropeço, é para com sua perfídia que ela falta, […] daqui em diante não será nada fácil agir como se nada houvesse, […] a intenção mais inocente fica desconcertada ao não mais poder calar que seus atos falhos são os mais bem sucedidos e que seu fracasso premia seu mais secreto anseio.”[5] Assim fugidia, tão logo aparece, a verdade se esquiva; impossível dizer toda a verdade.

Se é o saber que engaja o sujeito em sua ética, como diz Melman, na ética do desejo, por outro lado, quem fala é a verdade. Então, o sujeito do desejo tem relação com o saber e com a verdade. Lacan diz que “[…] a verdade não é algo que se alcance tão facilmente; diria que se a análise se afirma por uma presunção, é que dela possa se constituir um saber sobre a verdade.” [6] Somente uma análise engaja o sujeito no desejo, mas isso se dá a cada vez. E em ato.

Na lição 9, do dia 20 de março de 1973, Lacan entra novamente com os três termos indicados no capítulo 4: o pequeno a, o S de A barrado e o Φ, desta vez, inscrevendo-os em um triângulo constituído pelos vértices R, I[7], S, que designam, em suas junções: do lado direito, Φ, (entre R e I) um pouco de realidade, com que se sustenta o princípio do prazer e esse um pouco de realidade é “tudo o que nos é permitido abordar de realidade que permanece enraizado na fantasia”[8]

 

 

Do lado esquerdo, temos o S de A barrado (entre I e S), a impossibilidade de dizer toda a verdade. E por fim, o pequeno a (entre S e R), “aquilo pelo qual o Simbólico, ao dirigir-se ao Real, nos demonstra a verdadeira natureza do objeto a, que qualifiquei há pouco de semblante de ser” pois nos dá o suporte do ser. O pequeno a funciona como suporte do ser, na medida, em que é constituinte da fantasia, enquadre da realidade psíquica, e é com o que nos repetimos da mesma maneira, com os mesmos tropeços. “O pequeno a não se inscreve, ele não é o ser, é aparentemente, alguma coisa, mas que só se resolve pelo seu fracasso, justamente por não se inscrever completamente na abordagem do Real”[9]

“A verdade é isso que não se alcança nunca, a não ser por vias tortuosas.  A verdade – que somos habitualmente levados a invocar – é preciso simplesmente lembrar, que não se deve crer que já se está mesmo no semblante.”, pois o analista não é o semblante, mas eventualmente pode ocupar esse lugar, “pondo o objeto a no lugar de semblant, para interrogar como saber o que se refere à verdade”.[10]

Há um saber, portanto, que não se sabe, e lembro aqui que foi a partir da transferência que Freud serviu a Eros para servir-se dele, no trabalho com as histéricas. Há um saber, diz Lacan, “que não sabe e que é, propriamente falando, um saber que se sustenta pelo significante, como tal. E que um sonho não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma mística, que isso se lê no que diz dele e que poderá mesmo ir mais longe, tomando os equívocos no sentido mais anagramático da palavra.”[11]

Mas, se temos freudianamente que o inconsciente “tinha ao menos esse pequeno grau de abertura, graças ao qual o sofrimento podia ser dito”; nesse grau de abertura havia “algo que, verdadeiramente, […] o transcendia.”[12] Lacan desbasta a carne e nos deixa o osso: há sempre uma busca fadada ao fracasso, uma busca vã de uma sabedoria “inatangível”, inatingível e intangível, da ordem do impossível. Mas então, o que é que se sabe? O significante se estabelece nesse lugar Outro, na dit-mension com todas as assonâncias de dita-menção, da casa do dito ou da dimensão – e essa é a dimensão do dito pelo qual o saber estabelece o Outro como lugar. Esse é um saber de que se pode gozar, ter o usufruto, pois é assim que se renova a cada vez. “A fundação de um saber é que o gozo de seu exercício” – seu usufruto, acrescento – “é o mesmo que o da sua aquisição.”[13]

Seguindo com Lacan, diante o discurso analítico, arrisco-me a dizer que a constituição do ser é a constituição do ser de significância, o discurso da psicanálise nos leva a isso. A constituição do ser na linguagem se dá a partir desse Outro, desse S de A barrado, mas o que é demandado não é o que é pedido, nem o que é dado. E essa margem que se abre entre a demanda, o desejo e a necessidade, por puro destino linguageiro, essa margem é irrecuperável.  Só é possível ler a inscrição do sujeito a partir do tempo lógico, lembrando que o momento de concluir já está no bojo do instante de ver, ainda que, para isso, seja preciso um tempo para compreender. Se, como seres da linguagem passamos pela demanda ao Outro e pela demanda do Outro, abrindo uma margem irrecuperável, entre o desejo e a demanda, estas só podem ser inscritas retroativamente, a partir da entrada do falo. Essa marca, essa inscrição que marca os seres de linguagem que se inscrevem de um lado ou de outro: S1, esse um e do outro, S2: esse deux, esse d’eux, esse deles, tem-se que, o que vem em suplência a esse desencontro, é o encontro faltoso entre S barrado e o pequeno a, a fantasia, essa janela que abre lugar e fecha, ao mesmo tempo, o acesso ao inapreensível.

Arrisco, ainda, uma questão: a mulher, assim como a verdade, é não-toda; é cada uma, a cada vez, não se define como La femme, A mulher, assim como a verdade não se define como A verdade. Ambas estão do lado da não-toda. A verdade enuncia-se enquanto prosopopeia. E a mulher? O que há de indeterminação em sua existência, ou ex-sistência, isso que não a define apenas por um traço um, único; não seria isso que a coloca, assim como à verdade, próxima a esse A de abismo, A barrado, que só pode ser enunciado para além da língua, a partir da alíngua?


 

*  Trabalho escrito a partir do dispositivo da AEPM Trabalho preparatório ao Seminário de verão da ALI – 2023, sob a direção de Valéria Lameira e Virginia Guilhon (17/01/2023 a 09/05/2023) e apresentado no Encontro sobre o Seminário Encore realizado pelos Cartéis Lacanianos em 03/06/2023.

[1] Lacan, J. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, edição não comercial, 2010 p.93.

[2] Ibidem, p.92.

[3] Ibidem, p.99.

[4] Lacan, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998 p. 818.

[5] Lacan, J. A Coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998 p. 410-411.

[6] Lacan, J. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, edição não comercial, 2010 p.185.

[7] Na versão da ALI está i-Maginário, e não Imaginário.

[8] Lacan, J. Encore (1972-1973). Rio de Janeiro: Escola da Letra Freudiana, edição não comercial, 2010 p.189.

[9]Ibidem, p.190.

[10] Ibidem, 190-191.

[11] Ibidem, 191.

[12] Ibidem, 191.

[13] Ibidem, 192.