Concepção de mundo/ Discurso analítico/ Verbo ser

Dionysia Rache de Andrade

“e não adiantaria explicar porque a explicação exige uma outra explicação que exige uma outra explicação e que se abriria de novo para o mistério.”

“Vou te falando e me arriscando à desconexão: sou subterraneamente inatingível pelo meu conhecimento.”

“e renuncio a ter um significado…”

“X é o que existe dentro de mim”…  “eu só trabalho com achados e perdidos”…

(Clarice Lispector)

Meu ponto de partida é a fala de Lacan: “Avançando na corrente do discurso analítico temos que conceber que o que é chamado concepção de mundo é da ordem do cômico.”

O que me ocorre, de saída: tenho concepção de mundo? E vocês?

Supondo que a tenha ou tenha tido, o fato de ter sido atravessada por uma análise teve a consequência de eliminá-la? Ou essa eliminação só é possível no exercício do semblant de a, quando operamos nesse lugar, sob o comando de letras.

Pois bem, há ainda uma outra interrogação: por que uma concepção de mundo é da ordem do cômico? Poderíamos até pensar que ter uma concepção de mundo registra um up-grade, inclui os que a possuem no rol das pessoas sérias. Mas se acompanhamos Lacan não podemos pensar que as pessoas sérias são cômicas? Pois devemos tomar o sério como série, serial, o um indeterminado. Nesse caso, pois, o cômico seria justo estar fora do serial. E, com frequência, garantido pelo verbo ser.

Aqui, nesse ponto, temos que dar conta de uma definição mais rigorosa do que é concepção de mundo, a despeito de Lacan afirmar que o número de pensamentos implícitos numa concepção de mundo, Weltanschauung, é propriamente incalculável.  Vamos recorrer a Weltanschauung de Freud, ao dicionário, e a uma reflexão própria.

Freud no início da sua Conferência XXXV fala que ela, a Weltanschauung, é uma construção intelectual, que não deixa nenhuma pergunta sem resposta, onde tudo que nos interessa tem seu lugar fixo, e, nesse caso fica evidente que se situa entre os desejos ideais dos seres humanos.  Há que se destacar pergunta sem resposta e lugar fixo….

Prossegue discutindo a diferença entre a Weltanschauung religiosa e a científica. Conclui dizendo que na sua opinião a psicanálise é incapaz de criar uma Weltanschauung por si mesma.  Mas admite que ela, a psicanálise, faz parte da ciência, ela pode aderir a Weltanschauung científica.

(Aqui deixamos entre parênteses a questão da relação da psicanálise com a ciência que me parece ter abordagem diferente em Freud e Lacan. Lacan, em algum momento, interroga a ciência dita tradicional — como uma ciência, depois do que se pode dizer do inconsciente, é possível? Afirma em outro momento que o discurso analítico trouxe uma ciência nova e ainda fala da psicanálise como ciência do real.)

O que diz o dicionário?

No Houaiss, além da concepção de um novo ser, temos concepção de mundo: “maneira subjetiva de ver e entender o mundo, nas relações humanas e nos papéis das pessoas e o seu próprio na sociedade e também referida à questões filosóficas básicas como a finalidade da existência de vida […]”. Aqui também me parece que há algo da ordem do fixo.

Agora, o que penso. A concepção de mundo é um saber que nos sustenta. E quero particularizar nesse saber o valor do verbo ser na sua cópula afirmativa, é, que faz cópula e copula, fornecendo o estatuto de certeza/verdade, faz essa conjugação. A concepção de mundo nos dá o lugar de donos da verdade, estamos certos e somos bons, e mantemos ideais de como corrigir os males do mundo… nada mais distante do discurso analítico. Ficamos apoiados nas certezas. Uma citação de Dostoiévski aqui cai bem: “Somos assim, sonhamos o voo mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência das certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.” Para nós seriam certezas, caso fosse possível, que nos sustentam na relação com o objeto a, com o pequeno outro, com o grande Outro — que se definem topologicamente pelo lugar que habitamos…

Lacan explorando a significância diz que o “é o que é” pode ser entendido como “éu-quié”, eu digo o que é, o que o introduz na singularidade, pondo a perder, pois, o registro abrangente de uma verdade.  Enfatiza um saber próprio e, nesse sentido, poderíamos atribuir-lhe um viés narcísico ou um mero registro da singularidade? Além disso, como sujeitos afeitos e efeitos de linguagem sabemos que o ser é na linguagem o que mais se esquiva, lembrando aqui o próprio sujeito.

Sobre o être, o ser, ainda duas referências para serem refletidas, o parle-être, o parlêtre, quando fala o ser, onde o sujeito discorre, e, por outro lado, o m’être, lugar da mestria, onde o ser é conjugado no seu poder suposto.

O discurso analítico nos introduz a uma nova lógica, diferente dessa sustentada pelo ser, que nos desestabiliza, na falta de uma essência e de um universal vivemos sob recortes, submetidos que somos ao ser da significância, sustentada pelo gozo. De ego sólido passamos a sujeito, significante que erra nas malhas de uma rede, produzido e produzindo uma teia, como a aranha, fio in-corporado, eixo do fora/dentro. “[…] o que fala sem saber me faz eu (je), sujeito do verbo, mas isto não basta para me fazer ser.” diz Lacan.

Essa nova lógica não reconhece o universal nem o saber absoluto, não há última palavra em lugar nenhum, discussão que Lacan mantém com Aristóteles e Hegel.

Podemos admitir que essa nova lógica subverte uma articulação do pensamento que se sustenta no verbo ser. Aristóteles partia do universal para o singular, Lacan enfatiza o cada um, na paradoxal determinação/indeterminação. Eu diria numa determinação fantasmática e sintomática, numa indeterminação operada pelo real, pela distância intransponível em relação ao pequeno a, da introdução, pois, do impossível.

O verbo ser perde, pois, seu tom definitivo, vagueia na transitoriedade e, desse modo, contingente, não sustenta mais uma concepção de mundo, e seu copulativo é deixa de integrar essência/existência.

Aqui a filosofia heideggeriana nos fornece algo bem interessante, decorrente de sua pesquisa gramatical e etimológica do termo ser. Na sua investigação etimológica, percebe que ser tem três raízes diferentes, nenhuma mais determinante do que outra, por isso esse termo ser seria vazio e sua significação evanescente, conotado, pois então, sob a rubrica do significante.

O discurso analítico opera um descentramento, o ser se perde no significado fazendo operar uma dialética do é/não é. Entre o dito e o dizer verifica-se a diferença entre o ser e o ex-sistir.

Lembramos que Lacan recomenda um cuidado com esse termo “concepção de mundo” porque ele faz parte do discurso da filosofia. E ainda enfatiza que a linguagem se revela muito mais vasta como campo, muito mais rica de recursos do que ser simplesmente aquela que, ao longo do tempo, se instaurou pelo discurso filosófico, embora ele seja difícil de eliminar completamente.

O discurso analítico fala do “foder”, não do ser — aqui um aspecto desse grande deslocamento — e “aí se diz que isso não vai bem” — trata-se do impossível que se anuncia com o “não há relação sexual” — o que faz o fundo da vida, com efeito, é que tudo o que se refere às relações homens e mulheres, o que chamamos de coletividade, não vai bem , é uma lógica espantosa que sustenta o foder no seu eixo gozante, articulado pelo significante e pela letra.

E isso não vai bem. Lacan diz que estaria reservado a Freud evidenciar uma desordem, o ser real do homem tem uma hiância congênita. Ela pode ser desdobrada, no meu entender, no mal-entendido, no lugar dado ao pequeno outro regido pela rivalização, no desconhecimento do grande Outro ou na sua equivalência a um falo maciço e na imaginarização do pequeno a.

Considerando o eixo da nossa abordagem, concepção de mundo, discurso analítico, verbo ser, não podemos deixar de mencionar o semblant e o pareser.

Lacan insiste no semblant de a, rastro de um certo imaginário. Esse a tem um revestimento, entre eles há uma afinidade. Trata-se aí de um ponto de suspeição, seja em relação à própria psicanálise, afinal qual é seu objeto? A resposta viável nos levaria ao Real que só se inscreve por um impasse de formalização, deixando vislumbrar o seu inacessível.

Do semblant podemos seguir para uma outra abordagem  — a nova proposta de conjugação como alternativa à do ser, o pareser. Numa inversão, ser para, o que nos levaria ao amor… não vou entrar nele, depois fica difícil de sair.

Levando em conta a importância do semblant e do pareser na nossa articulação prática/teoria poderíamos supor, com razão, que vivemos num mundo de ilusão, em que nada é. Apesar do semblant, da conjugação do pareser, além da proposição do ex-sistir, não nos reconhecemos num mundo ilusório, uma vez que estamos submetidos a uma tríplice articulação, imaginário, simbólico e real, além de “bussolizados” pelo pequeno a. Vivemos sob recortes, nenhuma inteireza nos define  e perdemos, desde sempre, o é definitivo e conclusivo da verdade. O é eterno é teológico.

Temos o corpo recortado por palavras e/ou gestos que nos esculpem sintomaticamente. O real é faca amolada, é mola e… amola.

Arrisco a repetir com Riobaldo, personagem do Grande Sertão: Veredas, que tudo é e não é… E, justo o não é que torna possível a interrogação do falaser, e torna viável sua caminhada. Lembramos Freud, no fim do seu texto, “a negativa”: o acontecimento do inconsciente se exprime numa fórmula negativa. E Lacan nos diz que seu discurso é negativo, por isso não é filosófico. Além de afirmar no “Aturdito” que o não é isso é o vagido do apelo ao real.

Agora, na sobra, algumas questões:

    1. Um analista, fora do seu exercício no agenciamento do discurso analítico tem ou não tem concepção de mundo? Estou supondo que no seu exercício analítico, no lugar de a, não a tenha.
    2. É possível viver sem ela? Isso equivaleria a uma neutralidade absoluta, diante das intempéries sociais? Um não engajamento político/ideológico?

Freud diz que o sintoma social não pode deixar de concernir ao analista, não há subjetividade sem outros. Segundo Melman o sintoma social é referido aos discursos que nos regem. É possível desconjugar a leitura do sintoma social de uma concepção de mundo?

Sabemos que a concepção de mundo se assenta em certezas/supostas verdades, frequentemente suportadas por um ideal, que esconde ou disfarça aquela hiância congênita, citada acima, e que não deixa de ter o peso narcísico, “éu-quié”, ou de uma contaminação identificatória de massa.

    1. Vocês conhecem alguém, melhor perguntando, algum analista que não tenha “concepção de mundo”?

 

Entretanto, não podemos deixar de considerar que aquele que sofreu uma análise e que opera nessa função de semblant de a deve ter sido afetado pelo convívio de algumas concepções de Freud e Lacan:

— Para menorizar a verdade é preciso ter entrado no discurso analítico, a verdade congruente é sempre dita pelo meio-dizer;

— A ciência nova que a psicanálise inaugura é a ciência do real;

— As relações humanas padecem de uma falha inaugural que se traduz em demandas de ser e de ter, sobretudo amor, se institui, então, na rivalidade e na aspiração de comando;

— O humano está sujeito, cada um, à conjugação das pulsões de vida e morte, e, não por acaso, faz guerra.

E, ainda, volto a mais uma questão, referida ao estatuto do verbo ser: alguém pode se dizer psicanalista? Aí podemos reconhecer, nesse caso, o é como garantidor de uma verdade, lembrando que o lugar do analista nesse discurso é de semblante de a, e encore a afirmação de Lacan que nenhum discurso pode ser autoral.

Tendo en-corps (ENCORE) vivido essa experiência analítica e ainda considerando a estrutura do falaser regida pelo significante e pela letra, podemos admitir uma concepção de mundo?

Poderíamos dizer que a concepção de mundo nos interdita o Unheimlich do inconsciente? Diz Lacan: o que é o inconsciente? A coisa ainda não foi compreendida. Assim é que não se sabia que era uma falsificação querer tornar tranquilizador o Unheimlich, dado o pouquíssimo tranquilizador que é o inconsciente por sua natureza.

E, finalmente, para terminar, não posso deixar de recorrer a Riobaldo, do “Grande Sertão: Veredas”:

“Eu sei que isto que estou dizendo é muito entrançado… Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.”

DAR CORPO AO SUCEDER daquilo que não há de vir a ser. E, Clarice: “vir a ser é uma lenta dor boa.”

É isso que estamos fazendo?

Não há como escapar de Clarice, outra vez recorro a ela: “Eu que fabrico o futuro como uma aranha diligente. E o melhor de mim é que nada sei e fabrico não sei o quê.”


 

* Trabalho apresentado no Encontro sobre o Seminário Encore realizado pelos Cartéis Lacanianos em 03/06/2023.