Ler Freud e ler Lacan nos dias de hoje. Na AEPM.

Márcio Clayton Costa

Um momento particularmente emblemático do nosso trabalho no Dispositivo Ler Freud e ler Lacan nos dias de hoje com o texto Mal-estar na civilização  foi quando nos encontramos com o trecho em que Freud nos lembra como viemos ao mundo: Entre urina e fezes nascemos. Alguém complementou: Ninguém é flor que se cheire.

Isso nos convocou a fazer nosso trabalho de leitura de um modo um pouco menos pretensioso. O mal-estar na civilização não nos fala das mazelas de uma sociedade desajustada e neurotizante diante da qual portaríamos a solução mágica. Ele nos fala antes de como podemos interrogar com a psicanálise os nossos dias de ontem e de hoje: contando-nos nesse mal-estar, responsabilizando-nos por ele.

Não foram poucos os momentos em que pudemos testemunhar esse movimento em que tentamos bancar o comentarista crítico da sociedade e pudemos cair do cavalo no embalo próprio da leitura do texto. A psicanálise não admite que as belas almas permaneçam belas.

No texto, penso que pudemos entrever alguma coisa do que Lacan vai apontar como sendo estrutural: o mais de gozar. O que só se discerne registrando-se como perda do gozo, do que não se registra. O que divisamos nos exemplos freudianos do avanço tecnológico que nada mais faz que deslocar para outro ponto nossa insatisfação, faz lembrar o que Lacan chama de práticas de recuperação. Práticas em que somos engajados, o que inclui nossa marcha entusiasmada ou contrariada para o progresso científico. Tanto faz. Estamos até o talo nesse mal-estar que se denuncia na engenhosidade que empregamos para diluí-lo.

Na escrita que solicitamos aos participantes ao fim do nosso período de leitura não faltaram referências à presença desse mal-estar ali no próprio andamento do dispositivo. Indicação de que não tivemos sucesso em escamoteá-lo. Melhor para o trabalho. Curioso que também não faltaram votos de que houvesse uma continuidade. De fato, foi estranho interromper a leitura sem ter concluído o texto. Ainda mais estranho porque isso era facilmente previsível. Pensamos em prorrogar esse tempo, contudo houve a indicação, vinda da direção dos grupos de leitura e estudo, de que era importante fazer valer o que havia sido proposto desde o início.  A inércia da libido da qual nos fala Freud no texto se mostra também aí, nesses nossos votos de que tudo continue.

Uma instituição de psicanálise precisa funcionar analiticamente, é o que Lacan sustentou até o fim. Como estar à altura disso nesse trabalho que propõe um acesso que não é, de antemão, uma entrada? De que abertura se trata? Seja como for, ela exige algum tipo de fechamento. Para uma nova reabertura. Como? Foi o que precisei escrever para perguntar.


 

*Texto escrito após o encerramento do Dispositivo Ler Freud e ler Lacan nos dias de hoje, coordenado por Márcio Clayton Costa e Wânia  Silva de março a junho de 2024.