Duas afirmações de Melman de 1983: “O que faz comando para um falasser é um lugar”; “uma consistência perfeitamente contraditória funciona no cerne do falasser” (Novos estudos sobre a histeria).
Ao mostrar os quatro discursos na lição do dia 14 de janeiro de 1970, Lacan vai mostrando como a lei da linguagem se inscreve na estrutura e diz que: “Ao propormos a formalização do discurso e estabelecendo para nós mesmos, no interior dessa formalização, algumas regras destinadas a pô-la à prova, encontramos um elemento de impossibilidade. Eis o que está propriamente na base, na raiz do que é um fato de estrutura. E é isso, na estrutura, que nos interessa no nível da experiência analítica. […] Por que estamos pelejando com essa manipulação do significante e sua eventual articulação?” (Seminário XVII, p. 46).
A partir deste momento, Lacan evoca o fio que Freud seguiu em sua experiência: de um lado, o desejo, do outro, das Ding, pulsão de morte, a tendência do retorno ao inanimado. “Aí é que se origina, no discurso freudiano, a função de objeto perdido” (Seminário XVII, p. 48), que leva à busca desse gozo ruinoso (destrutivo). Por outro lado, Lacan traz a função traço unário como a forma mais simples de marca, que é falando propriamente a origem do significante; “[…] é no traço unário que tem origem tudo que nos interessa, a nós analistas, como saber” (Seminário XVII, p. 48). Esse traço nada tem a ver com o conhecimento, com algo que orientaria o sujeito. Não se pode atribuir a essa marca a coisidade da coisa, ou qualquer outra substancialidade, pois é isso que está perdido nesse traço, um saber que não se sabe. E Lacan acrescenta, é esse oco que os objetos vêm preencher, servir de rolha. O saber em sua origem se reduz à articulação significante e o objeto a decorre dessa entropia. Tal saber é meio de gozo, quando ele trabalha, o que se produz é entropia, é perda. (Seminário XVII, p. 53)
Partindo dessa consistência perfeitamente contraditória no cerne do falasser, encontramos a entropia, a perda e o saber reduzido em sua origem à articulação significante. S1, S2, par ordenado, presença e ausência, discos pretos, discos brancos, temos o discurso, que é um discurso sem palavras, cujo funcionamento se dá a partir dos termos: significantes S1 e S2, objeto a e sujeito barrado. E temos também lugares: o agente, o outro, o mais-de-gozar ou produção e a verdade.
Se o sofrimento, o sintoma, leva um sujeito a pedir uma análise, lembramos que o sofrimento só existe a partir do significante. E, por definição, um significante é o que representa um sujeito para outro significante. “[…] o processo primário não encontra nada de real, senão o impossível” (Escritos, De nossos antecedentes, p. 72) e no seminário De um Outro ao outro, Lacan diz: “[…] o sofrimento não é nada mais do que o sofrimento […]. Se o que fazemos, nós analistas, opera, é justamente daí que o sofrimento não é o sofrimento, […] o sofrimento é um fato” (Seminário XVI, p. 63, tradução CEF). E quanto ao fato, tudo que está no mundo, só se torna fato a partir do que o significante aí se articula. “Há o sofrimento que é fato, isto é, que encerra um dizer; é por essa ambiguidade que se refuta que ele seja intransponível em sua manifestação, que o sintoma pode ser a verdade. Eu faço dizer o sofrimento, como fiz dizer a verdade […]” (Seminário XVI, p. 63, tradução CEF). A verdade fala “Je”. Mas não há verdade absoluta, ela só pode ser semi-dita, só aparece em enigma. E o saber, por sua vez, se reduz em sua origem à articulação significante; em nosso saber, estamos reduzidos ao funcionamento significante.
Lacan nos leva ao osso duro da análise neste seminário. E um percurso longo de análise nos aproxima desse osso duro: passamos uma análise a construir, ou como saiu a construtuir, pelo qual fui fisgada: construir, ir tu, intuir, enfim, em uma análise, descobrimos que somos um pouco como Rosalie, protagonista do conto A enganada de Thomas Mann; construímos a nossa história, atribuímos sentido a tudo, protegemo-nos do vazio com uma fantasia que vem nos socorrer. Para não ficar tão espúrio, trago um trecho de uma sessão de análise: depois de falar desse conto de Thomas Mann, começo a perguntar em que vou usar o recurso herdado. E só vem a construção de uma casa, a construção de um empreendimento. E escuto: você só pensa em construir? E, como um relâmpago, lembro que minha avó construía casas, que minha mãe construía casas, que quando eu era criança brincava de mestre de obras. E começo a rir, pensando que acabara de inventar uma genealogia da construção. E dessa perfeita contradição não nos livramos, mesmo porque ela é constitutiva, e levamos, elevamos, ele, vamos, mas podemos.
*Texto escrito a partir do dispositivo Trabalho Preparatório para o Seminário de Verão da ALI – 2024, coordenado por Valéria Lameira e Virginia Guilhon.